terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Natal fora do ninho

Daniela Neto registra minha tentativa de dar colo a três.
Quem já teve a honra de conhecer a grande família Bernardon, lá do sudoeste do Paraná, sabe que Natal é uma festa sagrada. Neste ano, pela primeira vez na vida, passei a data longe de algum familiar. Por mais que tenha falado com vários ao longo do dia, o abraço e o beijo enviados por telefone ou internet não têm o mesmo afago. Como em Moçambique não sou a única desgarrada da família, resolvemos nos unir.

Depois de uma ceia farta e muitos bons drink madrugada do dia 25 adentro, fomos dar um pouco de carinho a quem, assim como nós, não teve o abraço da família neste Natal. O caminho até o orfanato Casa da Alegria, no bairro do Hulene, foi tenso. Areia e mais areia, buraco atrás de buraco. Mas mal chegamos, e uma criança saltitante abriu o portão para entrarmos. Trocamos a apreensão por toneladas de abraços, beijos, carinhos e o sentimento de que não estamos sós, por mais solitário que pareça nosso dia.

Para a foto, o sorriso igual ao meu; detalhe para os olhos.
Moçambique possui população de 20,3 milhões de pessoas, de acordo com o governo nacional. Segundo a UNAIDS, 16% da população adulta (entre 15 e 49 anos) são soropositivos. A Unicef estima que há 1,6 milhão de crianças órfãs no país, das quais 350 mil perderam seus pais devido ao vírus da AIDS. Na Casa da Alegria, essas estimativas ganham rostos, vozes, lágrimas e sorrisos.

Aqui há mais de 60 crianças, duas delas chegadas nesta noite de Natal. A mãe havia morrido três semanas após o parto dos gêmeos, provavelmente por alguma complicação causada pela AIDS. Foi enterrada ontem, mesmo dia em que o pai e viúvo os entregou à casa.

As histórias se repetem, dia após dia, Natal após Natal. Apesar da falta imensa que sinto da minha família neste dia, ter passado algum tempo com essas crianças ajudou a preencher aquela falta de afago. Voltei pra casa feliz.

(E, em tempo, aquele obrigada especial a Daniela Neto, Pedro Ferreira e Rodrigo Facundes, pela companhia e alegria natalinas :)

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Desenterrando posts #2: África do Sul

Alimentando a zebrita.
Na primeira vez que vim à África, não consegui fazer um safári. A grana estava ainda mais curta e, na única semana de folga que tive, fiquei doente. Mas, desta vez, consegui. Não foi assim um safári safári, com calças cáqui e chapéu de caçador, mas foi uma experiência bastante interessante.

No início do mês, uns amigos tugas e portugueses me convidaram pra passar um final de semana na África do Sul. Apesar de ficar bem perto de Maputo, minha única experiência lá tinha sido no aeroporto de Johannesburgo. Piolho de gabina que sou, já estava com a mochila pronta.

Chegamos ao Marloth Park na sexta à noite. Ficamos em uma casa no meio do parque, rodeada de mato e com visitinhas de animais. Exercitei meu dom da persuasão e convenci o amigo Rogerson a me levar dar uma voltinha no Kruger Park no sábado pela manhã.

O Kruger é um dos maiores e mais famosos parques nacionais de toda a África. Da galera, eu era uma das únicas que nunca havia ido pra lá. O negócio é gigante! Tem aproximadamente 2 milhões de hectares de área e, só de mamíferos, tem quase 150 espécies diferentes. A taxa que se paga para entrar é de 204 Rands, o que dá uns R$ 50, pra passar o dia todo.

Ahhhh, as girafas!
Passamos apenas quatro horas lá dentro. Tempo para entrar em um portão, dar uma voltinha e sair no próximo. Mas deu pra ver bastante coisa. Girafas e zebras tão quase tão comuns de ser ver lá quanto os veadinhos, que nunca sei se são impalas ou qualquer outra coisa. São veadinhos parecidos com o Bamby. Para mim, que não sou bióloga nem nada, quando são filhotes, são todos iguais. Mas sei que são ou gazelas, ou impalas ou kudus. Específica assim :)

No tempo que ficamos por lá, vimos três dos Big Five: leão (dois machos dormindo perto da estrada; dormindo, não, capotados!), elefante e rinoceronte. Faltaram os búfalos e os leopardos pra completar os cinco. Por mais clichê que soe, é uma sensação única estar ali, a menos de dez metros de distância desses animais todos. Você está na estrada, e, de repente, umas zebras passam pela frente do carro. Olha para o lado, e aparecem uns elefantes e umas girafas. Sensacional demais.

Galera na casa do mato.
O Kruger está sempre cheio de turistas, ou em carros próprios, ou naqueles ônibus abertos. Quando há alguns parados na beira da estrada, certamente há algum animal para se ver. Também há alguns motoristas dos ônibus de turismo que avisam se passaram por algum animal que valha a pena ir atrás. Foi assim com os dois leões que vimos.

De volta à Casa do Mato, no Marloth Park, tivemos algumas surpresas muito agradáveis. Uma javali apareceu por lá, com um filhotinho, e passou a tarde de sábado comendo coisas que demos. No domingo pela manhã, ainda de pijamas, olhei pela janela e havia um bando bem maior de javalis. Fui para a cozinha beber água e havia três zebras olhando pela janela. Claro que fomos lá fora tirar foto e dar comida pra elas. Acho que superei meu medo de equinos - ao menos das zebras.

Até voltar para o Brasil, quero tentar passar uma noite dentro do Kruger. Veremos se consigo.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Desenterrando posts #1: Swaziland

Cana em homenagem à Rainha.
Em nove dias, embarco para minha tão sonhada viagem para Zanzibar. Foi então que me dei conta de que, até agora, não postei nada sobre os outros países que visitei por aqui. Antes que o mundo acabe, ou que eu embarque rumo à terra de Freddie Mercury, melhor colocar em dia o blog. Comecemos pelo Reino da Suazilândia.

Estive no Kingdom of Swaziland duas vezes. A primeira foi no primeiro final de semana de setembro, durante o festival Umhlanga, ou Reed Dance, ou, em bom português, Dança da Cana.

Antes da explicação do ritual, um pouco de informação. Suazilândia é um dos menores paises da África. Possui pouco mais de 1,1 milhão de habitantes em 17,3 mil km² de território - menor que o Sergipe, que tem 21,9 mil km². Faz fronteira com a África do Sul e com Moçambique, e não possui saída para o mar. É uma das poucas monarquias que restaram na África, mais de um terço da população adulta é soropositiva (maior taxa de contaminação do mundo), e a poligamia é liberada. Só o rei tem 13 mulheres.

Voltando ao festival. O Umhlanga acontece todos os anos e reúne cerca de 30 mil mulheres. A intenção é homenagear a Rainha Mãe com resultados da colheita de cana-de-açúcar, um dos únicos produtos de exportação do país. Acontece mais ou menos assim: as moças da Swazi passam uns dias colhendo cana e, na cerimônia, carregam feixes que são entregues à Rainha Mãe como forma de celebrar a colheita. Tudo isso em um ritual belíssimo, com as moças vestidas de acordo com as vestimentas de suas tribos (todas de peitolas de fora, claro), cantando e dançando felizes da vida.

Candidata a (mais uma) esposa do Rei.
O ritual serve também para o rei escolher mais uma esposa. Devido a críticas, já faz alguns anos que ele não anuncia nenhuma nova. Mas, pra manter a tradição, as potenciais candidatas são identificadas durante a cerimônia com um cocar de penas vermelhas. Na teoria, são virgens, e não podem ser tocadas por nenhum homem durante os dias de cerimônia. Nem pra tirar foto.

Há uma história bastante conhecida aqui na África sobre uma das últimas esposas do rei. Na época, a menina era muito jovem, menor de idade, e foi obrigada pelos pais a se casar. Isso gerou uma confusão enorme com as organizações de direitos humanos e, desde então, a poligamia na Suazilândia está na mira da comunidade internacional.

Quando se atravessa a fronteira, há um choque visual. Moçambique é um país com bastante sujeira nas ruas, com estradas esburacadas, com chão de areia. Suazilândia, apesar da pobreza, possui boas estradas e é um país limpinho. É montanhoso e, por isso, faz um frio do cão!

Na segunda vez que estive lá, fui apenas para almoçar. É tão pertinho de Maputo que dá pra ir, amoçar e voltar em menos de quatro horas. E foi nessa segunda vez que vi uma família de girafas na beira da estrada. Havia umas cinco ou seis, com filhotinhos e tudo. Quase chorei de emoção. Mas os animais são assunto para o próximo post, sobre a África do Sul e os parques nacionais ;)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Um desabafo

Praia de Ponta do Ouro, sul de Moçambique.
Ninguém nunca disse que meu tempo em Moçambique seria simples e fácil. Como todo sonhador, vim cheia de ideias e de esperanças. Mas, às vezes, o tempo por aqui fica tão feio que é difícil ver além do horizonte cinzento que se impõe à minha frente.

Moçambique, assim como muitos outros países, possui uma história conturbada, uma independência recente e alguns conceitos de desenvolvimento truncados. E a população aprendeu rápido a colocar a culpa de tudo que é questionável na cultura. Dizer que algo é cultural e que deve ser respeitado como tal acaba sendo um golpe baixo, um soco no estômago, uma mordaça. Imobiliza, emudece, inibe.

Desde que cheguei, confronto-me com essa situação. Se proponho uma mudança, se questiono uma rotina, se busco entender o desconhecido, levo a máxima "assim é a nossa cultura". E, assim, muito do que tento acaba sendo ignorado, minhas perguntas ficam sem respostas, meus incentivos ficam sem retorno. Sinto-me encurralada, imóvel, impotente.

Gosto de Moçambique. Em momento algum me arrependo de ter aceitado o desafio de ter vindo pra cá. Mas, às vezes, acabo me sentindo frustrada por não conseguir fazer o que me proponho, por não conseguir fazer alguma diferença significativa, por não deixar legado algum. Sinto como se tivesse parado no tempo, sem conseguir passar pra frente o pouco conhecimento que tenho, e sem conseguir adquirir a sabedoria que busco.

Fico em Moçambique até março. Espero que o tempo abra até lá.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Aniversário maningue nice!

Não, as velas não estão no copo de Coca; há um cupcake lá.
Ontem foi meu aniversário. O primeiro que passo fora do Brasil. Pra quem me conhece há mais tempo, sabe que aniversário costuma ser um dia que eu me tranco em casa, fico triste, desanimada e tudo mais. Porém, neste ano, a coisa foi bem diferente.

As comemorações começaram às 7h da matina, com meus colegas de curso de francês. Sou a única estrangeira da classe, e isso tem sido muito interessante. Pra comemorar meu dia, eles me prepararam uma surpresa: um aniversário à la Moçambique.

Levei o bolo e eles, a surpresa. Na semana passada, em uma das conversas de aula, eles me explicaram que aqui, quando se ganha um presente, não é de bom tom abrir na frente das pessoas. Isso porque, se você não gostar do presente, vai deixar a pessoa sem graça. E com gente curiosa, como faz? Não aguento!

Sabendo da minha curiosidade, e como parte da surpresa, os colegas me colocaram sentada em uma cadeira. Uma das colegas veio com um pacote de presente e ela mesmo abriu o embrulho. Dentro, duas capulanas - aqueles panos lindos e supercoloridos que as mulheres usam aqui pra tudo. Uma era pra amarrar na cintura, e outra era pra dobrar e deixar sobre o ombro. Também ganhei umas pulseiras de madeira, do artesanato local. Tudo lindo.

Mes collègues
Depois de devidamente vestida, cada um falou algumas palavras bonitas. E me explicaram que aqui o aniversariante é considerado um bebê. As pessoas fazem tudo por ele, o dia todo. Por isso, depois de sentada e vestida, fiquei lá, com eles me servindo bolo, suco, café. Confesso que achei o máximo!

Alguns desvios de percurso durante o dia me fizeram chutar pra longe meu inferno astral, com todos os palavrões merecidos. Por muita sorte que tenho, recebi telefonemas, mensagens, e-mails e mil demonstrações de carinho de todo canto do mundo, que me lembraram a toda hora que há muito mais amor  que esses dias nublados de inferno astral!

À noite, encontrei com uma galera num barzinho. Confesso que esperava por uns 15, mas o dobro disso compareceu. Tanto que tivemos que colocar mais mesas, deslocar pessoas das mesas do lado - obviamente eu, com aquela cara de "olha, mil desculpas, mas sabe como é, né, hoje é meu aniversário"/olhos de gatinho de botas do Shrek. Ganhei presentes, beijos, abraços, e a companhia das pessoas mais legais de Maputo.

Então, este post com ares de "Meu querido diário" é pra agradecer a todos pelas manifestações de carinho, telefonemas, mensagens, beijos, abraços e mimos durante todo o dia de ontem. Foi o primeiro aniversário longe de casa, mas repleto de alegrias e companhias (físicas e virtuais) de pessoas que fazem os meus dias mais felizes. Kanimambo!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A maldição do refresco

Corrupção é um mal crônico. Existe em todo lugar, e não serei hipócrita de negar. Mas, aqui em Moçambique, é algo tão constante que acaba incorporado ao dia a dia dos cidadãos, passa despercebido, faz cegar. Para além da obviedade da política, a corrupção de policiais é, provavelmente, o que mais choca branquelos perdidos e desavisados por aqui.

Logo que cheguei, fui alertada. Ando sempre com cópia autenticada de meu passaporte na carteira, um pouco de dinheiro, nada de cartões de crédito. Assim como em São Paulo, há sempre que se deixar a vista, na carteira, o dinheiro do ladrão. Os valores maiores ficam escondidos. Mas aqui, o risco maior não são os ladrões. São os policiais.

Depois de três meses de aventuras em terras moçambas, na semana passada, fui abordada no meio da rua por um policial e sua AR-15. Pediu meu documento. Mostrei a cópia autenticada. Estava tudo certo, entregou-me de volta e fui andando. Se não a tivesse comigo, certamente me ameaçaria, tentaria me levar pra esquadra e, por fim, pediria quanto eu tinha na carteira para lhe pagar "um refresco".

No sábado, porém, não tive a mesma sorte. Não entrarei em detalhes sobre as bizarrices que andam acontecendo pra me lembrar que estou no meu inferno astral. Mas depois de ter sido avisada que terei que mudar de apartamento pra ontem, ter perdido um almoço já pago (feijoada, por sinal) e de minha sandália ter arrebentado no meio da rua (tudo isso em menos de três horas), meu amigo Rogerson e eu fomos parados por um "polícia".

Ele estava dirigindo, me levando pra casa pra trocar de calçado, e eu, pelo que o policial argumentou, disse para ele virar em uma rua onde não era permitido. Havia uma placa indicando o sentido e nenhuma que proibisse a manobra. Passei hoje pela mesma rua, e confirmei que não há uma placa sequer proibindo que se vire à direita. De qualquer forma, a arma apontada pro carro acaba derrubando qualquer argumento.

Paramos, mostramos até a etiqueta das cuecas. Todos os documentos em dia. Aí começa a argumentação de que não se pode virar ali. O cara ameaça levar pra esquadra. Ok, vamos. Segura a carteira de motorista por vários minutos e decide chamar um colega, que estava na outra esquina.

O colega, com a maior naturalidade do mundo, pergunta logo de cara quanto temos na carteira pra resolver este assunto. A multa seria de 1 mil Meticais, algo em torno de R$ 70, mais pelo menos a nossa tarde inteira de tempo. Oferecemos 500, e ele sente-se ofendido. "Dá lá 700. Afinal, também somos pessoas que erramos". Vontade louca de sair e meter aquela escopeta goela abaixo, pra ver se endireita.

Mas melhor não discutir com dois caras armados, sem nada pra fazer no sábado à tarde. Logo depois, soube que, na noite anterior, alguns amigos também foram abordados. Um de carro, que teve os documentos praticamente sequestrados por policiais até que pagasse a quantia exigida. Outro de taxi, que também teve que pagar para que lhe devolvessem o passaporte. Se todo mundo que conheço aqui em Maputo contasse seus desprazeres com estes ratos, publicaríamos um livro!

E, antes de começar a maldizer o mundo, que fique apenas registrado o triste fato que, depois de três meses, fui batizada com o refresco maldito da polícia local.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

A tuga mais azarada de Moçamba

Aos poucos, coloco o assunto em dia. Pra começar, vou pagando uma dívida: contar a história da Cristiana, a portuga mais azarada que já pisou em solo moçambicano. Tentarei resumir.

Conheci a Cristiana no início de julho, lá na ActionAid. Eu havia acabado de chegar para meus nove meses de trabalho. Ela, para dois de estágio, onde faria entrevistas e pesquisas para seu mestrado. Simples assim, pero no mucho.

Na primeira semana que estava em solo moçamba, Cristiana levou um susto. Uma bela noite, quando voltava para casa, seu taxi foi parado por três "polícia". Antes mesmo de qualquer pergunta, dois entraram atrás, um no banco do frente, Cristiana no meio do carro, com duas AR-15 apontadas. Queriam ver os documentos, que ela havia deixado em casa. Então, pediram uma graninha para um "refresco", ou teriam que levá-la à esquadra (que é como chamam a delegacia aqui). Muito portuga que é, ela bateu de frente e disse que não tinha refresco com ela. O banco onde ela poderia sacar o dinheiro era perto da casa onde ela estava. Logo, se iam até lá, que fossem até a casa para que ela mostrasse o passaporte. Muita discussão depois, e depois dela insistir em ser levada para a esquadra, os malandros a deixaram em paz.

Tempo depois, a mesma portuga sai para uma caminhada. Passa em frente a uma construção gigantesca, com umas escritas chinesas na entrada. Calçada limpa, tranquila. Até que uns guardas começam a apontar as armas e fazer sinal pra ela sair de lá. Depois de muito xingamento é que ela entendeu que a calçada era da casa do presidente de Moçambique, e que lá não se pisa, não se buzina, não se respira. Qualquer forma de vida deve se limitar ao outro lado da rua.

No tempo em que esteve por estas terras, Cristiana se mostrou uma pessoa muito, mas muito animada para festas. Fui a algumas com ela, mas a maioria ela foi com a família da casa onde estava ficando. Moçambicanos, todos, com a branquela a tiracolo. Mas, com o tempo, a cordialidade do local deu espaço à insegurança.

Um dia, sua câmera fotográfica desapareceu. No outro, um par de tênis. Até que, uma semana antes de voltar pra Portugal, enquanto falava comigo ao telefone, a Cristiana foi abordada na esquina de casa por um jovem armado. Levaram seu celular com todas as gravações de entrevistas para o mestrado.

Há também que ser lembrado que, nas duas únicas vezes que apareceram baratas aqui em casa, adivinhem quem estava aqui? (Cristiana, juro, nunca mais apareceu barata alguma aqui em casa!!)

Já faz um mês que a Cristiana voltou pra Portugal. Eu e a turminha sentimos falta da delicadeza portuguesa, das piadas, das comidas, da companhia. Apesar dos pesares, e de saber que ela não vai querer nunca mais por os pés aqui em Moçambique, ela foi uma das grandes amigas que fiz por aqui. Daquelas que se guarda pra sempre.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

... And we're back!

Praia dos Pescadores, Maputo.
Hoje faz um mês do meu último post, e, antes que eu mate a família do coração, vou voltar à rotina do Blog. Começo respondendo a alguns questionamentos constantes nos últimos dias.

Não morri, não estou doente, não decidi virar hippie. Apenas tirei esses últimos dias pra refletir um pouco. Ouvi, e não apenas uma vez, que eu estava reclamando demais aqui no Blog. Concordo que eu reclamo (e é assim que eu me conheço há quase três décadas), mas há também que se entender a linha tênue entre a reclamação e o sarcasmo. Eu sou uma pessoa sarcástica. A ironia faz parte da minha personalidade. E eu a uso sempre, mesmo sem ter intenção. Então, depois de muito pensar, a primeira decisão que tomei é que, sim, vou tentar (e digo TENTAR) me policiar nas reclamações, mas jamais, never, ever, vou deixar de ser irônica. É assim que eu sou, e pronto. E isso aqui é um blog pessoal. Até agora não o usei pra nenhum trabalho jornalístico. Quando usar, vai dar pra perceber a mudança na linguagem.

Segundo motivo que me levou a ficar em silêncio nos últimos tempos foi a necessidade de adaptação. Conheci muitas pessoas legais nos últimos dias, outras nem tão legais assim, levei um ou outro tombo, mas o balanço final foi positivo. Também tenho tentado me adaptar a Maputo e a seu modo de vida. Logo que se chega, tudo é lindo e diferente. Depois vem a fase do choque cultural, da revolta e do desapontamento. Era essa a fase em que eu estava desde o último post.

Presenciei várias coisas desagradáveis nesse tempo, coisas que eu não esperava. Minha amiga Cristiana, a portuguesa do post da Salsa, foi assaltada com uma faca enquanto falava comigo ao telefone. Ouvi tudo, sem poder fazer nada. Aí, junta com a saudade da família, saudade dos meus animais, dos amigos, sentimento de isolamento, e a coisa desanda de vez. Passei um tempo me sentindo vulnerável demais aqui em Moçambique, sensibilizada demais, mas pro lado ruim da coisa. Agora, ao que tudo indica, superei essa fase.
Olhar desconfiado na Costa do Sol, em Maputo.

A fase que estou agora é de aproveitar a experiência por aqui. Se vou voltar para o Brasil, se vou ficar mais tempo, se vou pra outro país, o que será da minha vida, não estou a fim de pensar agora. Estou aprendendo a viver um dia de cada vez, e, até agora, esse tem sido o maior dos aprendizados aqui em Moçambique.

Então, aos poucos coloco em dia os posts aqui no Blog. Prometi um post sobre a Cristiana, a gringa mais azarada que já pisou em Moçamba. Também tenho algumas fotos do Reed Dance, uma cerimônia que tive o prazer de assistir lá na Swazilândia. Umas voltas que dei pela cidade, umas fotos que tirei, como essas duas deste post. E mais alguma coisa que eu for lembrando. Mas uma coisa de cada vez, né? :)

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

F*da-se ligado no modo turbo

Estar em um país diferente é ótimo. A vivência, a troca de experiências, o conhecer o novo é sempre incrível. Mas há sempre o momento "p*ta que pariu, que que eu tô fazendo aqui?". O meu chegou nesses últimos dias.

Pra não me alongar muito, dois episódios da última semana.

Episódio 1 - Boca suja

Sábado de manhã, decidi sair pra dar uma caminhada na Feira do Pau Preto (sim, pau preto!) pra ver alguns artesanatos e comprar uma pintura pra disfarçar um pouco o laranja-gari da parede do apartamento onde moro. Mal chego, já junta um monte de gente querendo que eu compre qualquer coisa por um preço exorbitante. Mantenho a classe. "Não, obrigada", "não quero, obrigada". Até que um guri chega com uma espécie de xilofone rústico, cujo nome local a raiva do momento me fez esquecer completamente. Agradeço, digo que não estou interessada, e continuo a caminhada. O bendito vai atrás.

- Leva só pra me ajudar, mama.
- Não, não quero.
- Pode pagar o que quiser.
- Não quero.
- Compra, você tem dinheiro.

Minha santa! Entro em uma padaria no caminho. Tomo um café, como um pão com manteiga, vejo umas notícias na TV. E o cara me esperando lá fora, erguendo o xilofone a cada vez que passo os olhos pela janela. Não tem jeito, preciso ir pra casa. Mal coloco o pé na calçada, ele volta a me encher. Dois quarteirões depois, perco a paciência.

- Leva, você tem dinheiro, precisa me ajudaaaaaar!
- Meu querido, pega este instrumento e enfia no meio do seu c*. Eu já disse que não vou comprar p*rra nenhuma. Não tenho interesse. Não gosto. Não levo nem de graça.

Saiu de perto com os olhos arregalados. Resolveu.

Episódio 2 - O troco

Sexta-feira, final da tarde, galera toda querendo ir pra casa encher a cara. Busão lotado, chegando na paragem onde desço. Pego o dinheiro, dou ao cobrador e aviso que vou descer no próximo. Ele tenta dar uma de engraçadinho.

- Não quer sentar?
- Não, obrigada. Já disse que desço na próxima paragem.
- Não quer sentar aqui? - fala sorrindo e batendo a mão na perna.

Suspiro, olho pra ele com cara de pena.
- Meu querido, olha bem pra mim. Você aí, mal consegue se manter em pé, e ainda acha que alguém do meu naipe vai sentar no seu colo? Acha mesmo que consegue?

O chapa inteiro cai na gargalhada e grita, me apoiando. Ele insiste, levantando as sobrancelhas.
- Mas aqui é o melhor banco do chapa.
- Agora fala sério. Alguma vez essa conversinha furada colou com alguém? Alguma moça alguma vez aceitou isso? Funciona de verdade? Tá faltando tanto carinho assim em casa, meu querido?

Pronto, viro a rainha do chapa. Ganhei o dia. Até o motorista buzinou e me fez um joinha depois que desci.

O pior é que estou gostando desta minha nova versão.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

As aves que aqui gorjeiam

Segunda-feira é sempre um dia estranho aqui em Moçamba. Hoje, em especial, começou mais estranho que os demais.

Todas as manhãs, acordo com o som dos vendedores que ficam debaixo da minha janela e de umas aves estranhas. Ainda não consegui identificar que aves são aquelas. São pretas, fazem som de corvo, mas não tenho certeza se realmente são corvos. O fato é que não são sabiás, e o canto me parece um tanto quanto selvagem.

Hoje, entretanto, acordei as 5h da manhã, com uma pessoa ofegante debaixo da minha janela, e uns "flap-flop-flap-flop". Demorei a acreditar que poderia ser isso mesmo que você está pensando. O som era o mesmo, e não terminava nunca. Virei pro outro lado, o som persistia. Incomodada, olhei pela janela. Era um velhinho tentando fazer seu cooper às 5h da manhã, e de chinelos! Por Deus! E o pior é que ele ia da entrada do meu prédio até a esquina e voltava, em uma distância de não mais de 30 metros.

Depois de amaldiçoar mentalmente os últimos dias de vida do velhote e seus chinelos, eis que ele cansou e consegui dormir de novo. Pontualmente, às 6h30, chegaram os vendedores e seus megafones imbutidos nas gargantas. Como falam alto!

Reclamações à parte, para além da barulheira dos ambulantes, hoje não foram os corvos, ou seus primos, que cantaram pela manhã. Eram passarinhos mesmo, desses de canto fininho. Quando levantei, percebi que estava nublado. Vai ver, quando o tempo está pra chuva, os corvos dão lugar aos passarinhos.

Outro ponto peculiar aqui em Maputo é o cheiro das ruas na segunda de manhã. A galera bebe todas no final de semana, e o cheiro de xixi é tão forte que é quase possível ver o vaporzinho subindo. Nem banheiro de rodoviária consegue superar o ambiente de segunda cedo.

Depois de compartilhar com o mundo meu mau humor matinal, fui supreendida por um senhor e sua garrafa de pinga. Na esquina de casa, aquele olhar opaco, que parece olhar através das pessoas, que só os bebuns têm. Um sorriso frouxo e sem dentes. Olhou na minha direção, ergueu a garrafa e disse "Moçambique é bom, né?"

Ainda não tenho minha ideia formada, mas, apesar dos pesares, consegui rir um pouco logo pela manhã.

terça-feira, 31 de julho de 2012

Vou de taxi, cê sabe!

Começar um post, a essas alturas, falando que o alguma coisa aqui é uma loucura seria repetir o óbvio. Mas é difícil achar um adjetivo que descreva melhor o trânsito e os meios de transporte em Maputo.

A primeira coisa que um gringo branquelo não vindo das proximidades do Reino Unido ou da Ásia precisa superar é a tal da mão inglesa. Das duas uma: ou você vai acabar abrindo a porta do motorista quando pegar uma carona e vai se deparar com o volante (enquanto o motorista ri da sua cara, claro), ou vai viver perigosamente a cada esquina. Eu, que não sou qualquer turista, já fiz dos dois. E, como gosto de bater perna, só agora começo a me acostumar a olhar pro lado certo quando atravesso a rua.

Outra aventura, e das grandes, como comecei a relatar no post anterior, é andar nos chapas. Agora que moro em outro lugar, tenho a sorte de pegar os micro onibus no contrafluxo e raramente vou pro trabalho cheirando o cangote dos colegas. Não tenho a mesma sorte com as músicas.

Motorista do chopela tentando desviar do trânsito.
Motorista de chapa precisa ser, obrigatoriamente, DJ nas horas vagas. E precisa praticar nas horas de trabalho mesmo, o que dificulta um bocadinho a comunicação. Hoje, enquanto ia para o trabalho, tocou de tudo no rádio do busão: Michel Teló, Wando, Fagner, Roberto Carlos, e, de saideira, The power of love, aquela que a Rosana traduziu como O amor e o poder. E o volume estava tão alto que se eu começasse a cantar junto, ninguém ia perceber. Aliás, essa seria uma boa, hein? A branquela doida cantando Como uma deusa / você me mantém!

O desafio maior, porém, é você avisar o motora que vai descer no próximo ponto. É claro que não tem cordinha pra puxar. Tem que encher o pulmão e gritar "Paragem!". Isso umas três vezes, até alguém escutar. O cobrador é quem geralmente avisa o motorista, mas isso quando não está pendurado pra fora do busão, chamando a galera pra entrar.

Funciona mais ou menos assim: o chapa vai chegando no ponto, ou paragem, o cobrador já abre a porta e poe metade do corpo pra fora. Se ninguém vai descer, ele fica lá, gritando o destino final pra ver se alguém se interessa em subir. Se alguém desce, ele vai acompanhando, caminhando, do lado de fora, mão agarrando o puta-merda da porta, e gritando pra chamar a galera. Aí o motorista dá uma acelerada mais forte e ele pula pra dentro. Enquanto isso, a galera tem que descer com o veículo em movimento. Adrenalina pura!

A comunicação cobrador/motorista também é interessante. Usa-se o moderno método de bater na lataria. Se tem um tiozinho correndo pra pegar o chapa e o motora não viu, o cobrador tasca soco na lataria. O motorista acelera menos e a pessoa sobe. Se alguém grita "Paragem!" e o motorista não escuta, o cobrador assovia e tudo se resolve.

E, a mais clássica de todas: se o busão tá cheio (lê-se cheio pra caraca, com gente com a busanfa pra fora da janela e cabeça ralando no teto), o motorista, além de não parar, vai te fazer um sinal. Vai bater com a palma de uma mão aberta sobre a outra, fechada, estilo "sentou no sorvete". Pra eles, é um gesto de "tá cheio, ê pá". No Brasil, a gente entenderia "se ferrou!". Então, se for pegar chapa aqui e levar este gesto, ele não está rindo da sua cara e te mandando ir a pé. E, acredite, você estaria muito mais ferrado se ele tivesse parado pra você entrar.

Por fim, compartilho outra experiência que tive na semana passada. Sexta-feira, abertura das Olimpíadas, fui comprar uma TV. Não ia trazer de chapa e não passava um taxi na rua. Peguei um chopela, aquela cruza de moto com fusca, da foto ali do lado. Ainda não consegui fotografar um daqui, mas o modelo indiano que peguei na internet ilustra bem. Por incrível que pareça, não começaram a usar chopela como transporte de mais de dois passageiros por aqui. Melhor não divulgar muito essa foto indiana.

Pois bem, o tal do chopela (que, na língua local, significa carona) custa metade da corrida de taxi, com o dobro de aventura. Não tem cinto de segurança nem capacete. O vento bate na cara o trajeto todo. E os pilotos deixam motoboy paulista comendo poeira. Detalhe é que fazem isso com você dentro.

Tentei filmar o trajeto de dentro do chopela, mas o negócio treme tanto que tive que escolher entre filmar e segurar a mim, o celular e a caixa da TV dentro dele. Mas vale a canora.


segunda-feira, 30 de julho de 2012

No português de Moçambique


Aqui em Moçambique, fala-se português na maioria das vezes, mas isso não é garantia de comunicação fluida. O português é bem lusitano, com palavras conhecidas nas nossas piadas, como bicha e rapariga, mas com uma pitadinha da pimenta africana.

Há uma porção de dialetos, quase 30 só em Moçambique. Quando a galera vê que tem um branco por perto e não quer que ele participe da conversa, tasca dialeto. Mas tem muita palavra que não existe e eles recorrem ao português. Dia desses estava no chapa e o motora falando com o cobrador “birulirularoler miripirotimoleno ENGARRAFAMENTO!”. Pelo menos entendi que não era de mim que estavam falando.

Também tem a famosa expressão “então tá NICE!”, que já recorre ao inglês e fica mais chique. Mas engraçado mesmo é quando eles falam “estamos juntos”. Pra eles, “estamos juntos” é como um “então beleza”. “Mano, vou ali almoçar e depois vou dar uma cochilada.” “Estamos juntos.”

Além disso, mulher deconhecida é "mama", ou "mami", pros mais meigos. Nada da tia da escola. É a mama mesmo. Acompanhando o raciocínio, nosso “tiozão” ou “tiozinho” é o “papa” deles, ou o “papi”. E quando a pessoa é brother, chama de mano. Tudo em família.

Eu, como boa brasileira que sou, já dei minhas mancadas por aqui. Dia desses fui a uma pastelaria. Estava lá, no letreiro, bem grandão: Twigo Pastelaria, Padaria e Restaurante. Pois bem. Chamo a garçonete.

- Tem pastel de quê?
- Não temos pasteis.
- Mas aqui não é uma pastelaria?
- É, sim senhora.
- E não tem pastel?

Respondeu nada. Ficou muda, me olhando com uma cara de que nada seria mais óbvio que não ter pastel numa pastelaria. Não entendi. Olhei o cardápio. Imaginei que Sandes era sanduiche, e era mesmo, mas a foto não era muito bonita. Depois descobri que, a não ser no KFC, a foto do cardápio nunca corresponde ao que é servido. E não é nada de propaganda enganosa, é que não tem nada a ver mesmo. A figura não ilustra a escrita. Pode ser uma foto de buchada de bode pra ilustrar uma caldeirada de mariscos. E ninguém liga pra isso mesmo.

Enfim. Olhei o cardápio e pedi um prego no pão. Prego é o que eles chamam de bife. Um xis-boi, com bife, tomate e cebola no pão francês, que aqui não chama de francês, só de pão. Pão de leite é pão de leite, pão de mel nem existe, mas pão francês é só pão. E pão de queijo é uma lenda que contam existir lá no Cantinho do Brasil, mas nunca consegui ver. Aliás, se a brasileira dona de lá dependesse disso pra viver no Brasil, morreria de fome. Pior comida que já provei na vida.

Dia desses, perguntei pro logista da ONG o que é uma pastelaria. Ele disse, com a maior obviedade do mundo, que é onde se fazem lanches, ô pá. Então, pra um bom brasileiro, pastelaria aqui é nossa tradicional lanchonete.

Pra geladeira, eles falam geleira. Comem omolete, e não omelete. E a feijoada deles tem nada a ver com a nossa. Vai carne de boi, e nem precisa ser com feijão preto. Tem até versão com frutos do mar – herança dos portuga.

Se você vai pegar uma carona com alguém, diz que vai pegar uma boleia. E boleia também é o nome daquelas motinhos indianas, cruza de moto com fusca, que aqui funcionam como taxi, e, na língua local, chamam-se chopela. Mas essa boleia não é de graça. Quando alguma coisa é na faixa, eles falam que é "de borla". A vantagem de andar de chopela é que é uma aventura a parte, pra compensar a metade do preço cobrado pelos taxis. Tentei fazer um viodizinho dia desses andando em uma. Posto durante a semana.

O trem aqui se chama comboio, mas é uma coisa que nunca funciona e todo mundo reclama. Pior um pouco que em São Paulo.

E o busão daqui se chama chapa. Aliás, esses chapas, meu amigo, são capazes de colocar suas orações em dia. Podem ser micro onibus (chapa 100) ou aquelas vans mesmo, estilo transporte clandestino. Mas em todo o tempo que morei em Foz do Iguaçu e de todas as vezes que cruzei a Ponte da Amizade, nunca vi uma van que chegasse aos pés desses chapas.

Pra quem conhece Foz do Iguaçu, pensa em uma van daquelas que cruzam a ponte. Daquelas típicas mesmo, que a porta não fecha e que a mola do banco fura a calça. Agora pensa nessa van depois de um tiroteio na ponte, cheio de negão suando de nervoso dentro. Pois este é o visual e o aroma dos chapas.
Se no inverno o fudum já é dos bravos, fico imaginando o que será de mim no verão.

Pensei em comprar uma bicicleta pra dar minhas voltas por aqui. Até vi uma marca local nesse final de semana, a Mozambike. Mas me disseram que era preciso ter carteira pra pilotar uma bike daquelas. Vai saber que poder ela tem nas suas 5 marchas. Mas pra andar de moto de poucas cilindradas, também ouvi dizer que não precisa de carteira. Então, até o verão, compro uma motinho. Até lá, dou minhas voltas de chapa mesmo.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Um pouco da vizinhança

A pedidos, depois de criar um pouco de coragem, aqui vão algumas fotos da vizinhança do trabalho. Estão meio estranhas porque tirei com o celular, caminhando ou de dentro do busão. Metade delas ao som de Roberto Carlos, Paula Fernandes, Gustavo Lima e Michel Teló, que fazem o maior sucesso com a galera de Moçamba. Hoje, inclusive, cheguei no trabalho com a criançada cantando, logo cedo "Já pegou no cabelinho? Já peguei! Já pegou na orelhinha? Já peguei!". Alias, as músicas que tocam aqui são um assunto a parte. Ficam pra outro post.



Rua logo na entrada da "comunidade" onde trabalho.

Mesma rua, um pouco mais perto do trampo.

A rádio onde trabalho fica no predinho do meio.


Uma parte do mercado Xipamanine, perto do trabalho também.


Galera vende as coisas no chão mesmo, e acha-se de tudo nesse mercado.

Eu, cidadã moçambicana


Segunda foi também o dia de pedir pra instalar internet no meu novo lar. Pra minha sorte, tem um escritório das Telecomunicações de Moçambique bem em frente ao prédio onde moro. Cheguei logo que vi pela janela que haviam aberto o escritório.


Peguei a lista de documentos necessários. Ferrou. Precisa ter um tal de NUIT, que é uma espécie de CPF moçambicano. Explico pra moça que não sou moçambicana, que estou aqui fazendo trabalho voluntário, que não faz sentido eu ter esse documento. Ela chama o chefe, um gringo com cara de árabe, usando um vestido de cetim e um chapeuzinho muçulmano, que começa o sermão.

- Sem o NUIT, não há de ser possível, ó pá. Todo cidadão precisa ter um NUIT. É uma prova de que a senhora está com os impostos em dia.
- Mas meu senhor, eu nem sou moçambicana.
- Mas está morando aqui, então, pelo tempo que ficar em Moçambique, tem que provar que paga imposto.
- Meu trabalho é voluntário, não tem nada de imposto pra se pagar.
- Mas se não tem imposto pra pagar, tem que provar também. E prova isso com o NUIT. Todo cidadão moçambicano precisa ter.

Não vai ter jeito. Pego um a carona com o office-boy da TDM mesmo e vou até o lugar onde se tira o tal de NUIT. Por sorte sai na hora e é de graça.

Chego lá, começo a preencher um formulário sem fim. Lá pelas tantas, pedem dados de um contato meu em Moçambique, uma espécie de referência. Não tenho, deixo em branco. Quando entrego, o atendente me barra.

- E o seu representante?
- Não tenho.
- Não conhece ninguém em Moçambique?
- A ponto de me representar, não.
- Mas e se a gente quiser falar com a senhora, como entra em contato?
- Tem meu telefone aí, ó. E meu endereço. E meu e-mail. Tá tudo aí.
- Mas tem que ter contato de referência. A senhora não trabalha?
- Faço trabalho voluntário.
- Então não paga imposto. Mas tem que ter representante mesmo assim.

Tá bom. Ligo pro diretor da rádio, que aceita ser minha referência. Preencho e entrego de novo.

- Agora a senhora pode se sentar ali, que preciso fazer umas coisas e depois faço seu cadastro. Esteja a vontade. Leva só um bocadinho de tempo.
- Então, enquanto isso, vou até o banco, pode ser?
- Se a senhora for, há de levar o papel consigo.
- Mas aí como você faz meu cadastro?
- Faço quando a senhora voltar.

Silêncio. Cara de paisagem.

- Ok, espero aqui então.
- Fique a vontade, só leva um bocadinho de tempo.

Algumas conversas fiadas com a colega depois, ele me chama no balcão de novo.

- Senhora, essa referência, veja cá como está o registro deste senhor [fala virando o monitor pra mim]. Está todo em branco. Não há de servir como referência.

Eu ali, muda, esperando ele me mandar procurar outra pessoa. Arrisco:

- Mas é o único contato que tenho aqui.
- Então hei de deixar sem referência mesmo. Mas avise este senhor que ele precisa completar os dados dele no registro. O NUIT dele é muito antigo, e há de ser atualizado. Por isso, vou deixar seu NUIT sem referência.

Minha Santa Maracujina! Então não era assim tão obrigatória esta bendita referência. Melhor ficar calada. Mais um “bocadinho de tempo” sentada depois, sai uma folha de papel com meu NUIT impresso.

- Se a senhora quiser, pode ir neste endereço aqui [aponta pro papel] e pede pra fazer uma carteirinha. Brasileiros gostam muito de carteirinhas, né? Pra colocar no bolso, levar junto na carteira. Aí não precisa levar esse papel.

Apenas sorrio e concordo. Nem te conto onde enfio essa carteirinha, ó pá.

Então agora sou cidadã moçambicana. Mas o contrato da internet só fica pronto pra assinar na terça. E mais cinco dias úteis pra instalar o telefone – sem combinar data ou horário antes, na surpresa mesmo. Se eu não estiver em casa, eles ligam no meu celular e eu saio correndo pra casa antes deles irem embora. Só depois disso, posso comprar o modem e colocar ADSL em casa.

E assim a África anda.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

José, o Zeferino de Moçamba


Pra não falarem que eu só reclamo, contei a primeira parte alegre sobre a mudança pro apartamento. Faltou, óbvio, a novela mexicana dos primeiros dias. Mas, pra deixar a história menos angustiante, vou falar do José, o quebra-galho que foi dar um tapa lá no meu flat – no bom sentido, é claro.


Antes, uns detalhes. Comprei minha vasta lista de móveis e artigos pra decoração na sexta-feira passada. Pra dar aquela força, um dos logísticos lá da ONG (logístico é a versão chique pra office-boy) pegou o caminhãozinho dele, colocamos todas as cinco caixas em cima, e levamos pro apê. Chegando lá, minha coordenadora, que já havia tentando dar uma prensa no pintor sem que eu percebesse, me avisou que ainda faltavam uns detalhes. Coisa básica: não tinha cópia da chave do cadeado da entrada do prédio, os canos estavam entupidos, o pintor não havia terminado o serviço dele, nem ia terminar, e o eletricista viria no dia seguinte. Logo, teria que dormir mais uma noite no hotel.

Sem problemas. Dia seguinte, peguei um taxi e levei as coisas todas pro apartamento. Detalhe é que o motorista sequer desceu do carro. Nas palavras dele, ele era motorista, e não carregador. Pois bem, que morra com a bunda colada naquele banco ensebado.

Duas horas depois, batem na minha porta. Abro e descubro, depois de muito penar, que era o vizinho, cujo nome não entendi, com o José, o eletricista. Detalhe que o vizinho é gago. Mas não gago só de sílaba. Cada vez que ele gagejava, ele erguia os calcanhares, fazia um “Píiii-fim-iiim-desculpa” ou “Ihhh-fiimm-hom-desculpa”, e gaguejava mais ainda. E eu ali, com a porta entreaberta, segurando o look cara de paisagem, chorando de rir internamente, esperando até que saísse a frase inteira.

Nesse tempo, avisaram que o encanador não ia aparecer. Então, o José, o eletricista, avisa que pode fazer os trabalhos de encanador também. Das 11h da manhã às 8h da noite, lá ficamos eu e José no apartamento. E nada do trabalho acabar. Decidimos que ele voltaria na segunda. Ao menos havia água (fria) e lâmpada funcionando.

Ele foi e eu decidi limpar o apartamento pra começar a guardar as coisas. Dois armários limpos depois, acabou a água. E eu sem tomar banho. Fingi calma pra mim mesma e continuei, na certeza de que a água voltaria. Já passava das 11h da noite quando ouvi um barulho de água na caixa da privada. Só deu tempo de subir na banheira e tomar banho na torneira de água fria mesmo, de canequinha. Foi sair que a água acabou de novo.

(Dois detalhes: na África, ter banheira é coisa comum. Não é chique. Até porque a galera usa a banheira como uma grande bacia que só não deixa a água espalhar pelo banheiro. Não enche e fica lá sentado, pensando na vida. Fica em pé dentro mesmo, e toma banho normal. Outro detalhe é que aqui não é costume usar chuveiro elétrico. Galera usa termoacumulador e aquelas torneiras misturadoras na casa toda. Pra que é que vai ter água quente na pia da cozinha, em plena África? Pra não congelar a mão nos 20° que tá fazendo agora no inverno? Ah, vah!)

No dia seguinte, quase meio dia, e ainda sem água. Ligo pra minha coordenadora, que fala com a dona da casa. Aqui em Moçambique, a galera muito esperta tem a caixa de água no nível do chão. Então, tem que ter sempre uma bomba funcionando pra mandar a água pra cima. Se não bastasse isso, a bomba do meu apartamento e do vizinho gago é a mesma. Ele estava com um vazamento em casa, e decidiu desligar. Assim, na boa, sem avisar. Tá bom que ia levar um tempo pra sair a frase avisando, mas podia ter tentado, né?

Enquanto falava com ela no telefone, um estouro e fumaça na caixa de eletricidade. Voltou a água, foi-se a luz. Chama o seu José! Domingo é dia de descanso, mas ele compreende a necessidade e vai mesmo assim.

A água volta e começa a pingar de dentro de um dos interruptores. É claro que não ia dar certo. Como é domingo, José dá um jeitinho de isolar aqueles fios molhados, só pra não incendiar até o dia seguinte.
E eis que segunda de manhã, José avisa que vai atrasar. A esposa dele está com malária, mas isso não assusta mais a galera por aqui. Ele a deixa no hospital e vai lá socorrer a branquela, que ainda tá tomando banho frio, e de caneca.

José é uma das poucas pessoas aqui em Moçambique que parece não ter medo de trabalho. Leva tudo na esportiva, e dá um jeito pra tudo. Tem o dom da gambiarra, mas com isso eu me identifico. Até que, lá pelas tantas de segunda-feira, resolvi ajudar o Zé. Nos outros dias ele não deixou, mas depois de uns papos, ele aceita minha ajuda. Assim, acabamos mais rápido.

Depois de três dias de sufoco, tomei meu mais que merecido banho quente, cozinhei um arroz com feijão no fogão que o Zé chumbou na parede (soldou o suporte da madeira na parede mesmo, com aqueles aparelhos de soldador, já que eu tava com medo que caísse. Agora, nunca mais). E com uma boa dose de relaxante muscular, dormi feito uma pedra.

Só falta a internet em casa, que levei um baile pra pedir. Mas isso é assunto pra outro post.

Home sweet home


Enfim, estou morando em casa. Nada mais de comer sanduíche todo dia nem de lavar roupa na banheira do hotel. Depois de três semanas de procuras, enrolações e falcatruas, eis que tenho um apartamento só meu.

Achar lugar pra morar em Maputo não foi uma tarefa muito fácil. Como sou voluntária na ONG, tive que procurar um flat, como chamam aqui, dentro do orçamento disponível – e bem apertado. No acordo de trabalho, também dizia que precisava ser um Tipo 1 (de um quarto só), em lugar seguro e perto do local de trabalho. Visto que estou trabalhando em uma rádio comunitária no meio da favela, resolvi ignorar um pouco o quesito proximidade. Perto e seguro não ia rolar.

O mercado imobiliário tem lá suas peculiaridades. Além do corretor, tem sempre de duas a quatro outras pessoas que entram no bolo do primeiro pagamento – o vizinho que fica com a chave, a amiga do vizinho, que fica com a chave quando ele não está, o amigo do amigo do vizinho, que também quer uma graninha fácil e se encarrega de trazer mais gente interessada em alugar, e por aí vai. Então, o valor inicial do imóvel sempre ganha aquela reajustada pra conseguir pagar essa galera toda. E uma inflacionada quando percebem que a locatária é uma branquela. E, assim, o orçamento vai pras cucuias.

A questão de tempo, como sempre, também é muito relativa. Tanto faz levar duas semanas pra darem a resposta do dono do apartamento quanto podem alugar pra outro enquanto você inspira pra dar sua resposta. Um dos apartamentos que vi, prontinho pra morar e relativamente perto do trabalho, foi alugado pra outras pessoas enquanto digitavam as informações no contrato. E só informaram porque telefonamos para pegar a assinatura.

Mas, depois de muita paciência e sola de sapato, mudei para meu flat. Fica em um dos bairros mais seguros por aqui. É tranquilo, e tem um KFC a duas quadras daqui. E também tem um shopping e um palácio de casamentos, que tem rodízio de noiva todo sábado. Ainda vou lá tirar umas fotos.

O orçamento pra comprar mobília também é bastante limitado. Então, me acostumo com o eco. Aí do lado tem a foto da minha cozinha, o cômodo mais mobiliado do apartamento. Tem até um bolo de chocolate em cima da pia, se repararem bem. O laranja da parede ficou um pouco desbotado porque tirei a foto com o celular. Mas o look do apê é todo em tom de laranja gari. E vai ficar assim até agosto, quando vou ter dinheiro pra comprar tinta e mudar essas cores.

Detalhe para a geladeira de anão. Não que eu seja muito alta, mas esse frigobar com congelador que deu pra comprar é bastante engraçadinho no alto de seu 1,20 m de altura. Outras “modernidades” são o forno-elétrico-com-duas-bocas-de-fogão-em-cima Tabajara e a super máquina de lavar tanquinho-centrífuga-separados-mas-na-mesma-embalagem, tudo diretamente da China. Além disso, comprei uma cama. E negócios de cozinha, também no Bazar da China, que fica aqui na rua de trás. E só. 

Tá bom pra viver mais oito meses, né?

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Salsa colombiana no Centro Cultural Brasil-Moçambique

Quase uma semana sem post no blog me deixa com muito assunto atrasado. Preciso falar do apartamento onde estou morando, das aventuras de andar de chapa (o busão de Moçamba), das palavras diferentes que tenho aprendido, e mais um montão de coisa. Vou escrevendo conforme posso, mas já ficam registrados os próximos assuntos.

Pra não perder o timming, posto sobre uma apresentação que vi ontem. Foi no Centro Cultural Brasil-Moçambique. E era de salsa. Colombiana! Mistura?

Como boa turista que sou, fui logo tirar uma foto com os dançarinos - uma negrona elástica, um mulato loiro, um colombiano oxigenado e uma colombiana a la Panicat. Comigo na foto, a Cristiana, uma portuga super gente fina que também está fazendo uns trabalhos lá na ONG.

Agradecimentos à Marianna, carioca bem querida que também é voluntária na ONG, que convidou para o evento e tirou a foto :)

E, pro turismo ficar completo, abaixo vai um videozinho muito meia boca que fiz com o celular. Tem uns ombros na frente, a luz tá fraca, mas dá pra ver como dançam esses colombianos.



Reza a lenda que terei internet em casa até o final de semana. Só acredito depois que acessar o Google de lá. De qualquer forma, tentarei postar com mais frequência nos próximos dias.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O dom da oratória


Chego a uma loja hoje pela manhã. São 8h05 e a porta está fechada. O segurança vem ao meu encontro.

- Está fechada.
- E a que horas abrem?
- Às 9h30.
- 9h30?!
- Não, às NOVE e trinta.
(Só pode ser pegadinha, penso.) – Abrem daqui a uma hora e meia?
- Não, abrem às 9h30, daqui a 25 minutos. Terás que aguardar um bocadinho.
- Mas e que horas são agora?
- São nove e cinco.
- Oito e cinco?
- Sim, nove e cinco.

Decido ir embora e voltar à tarde.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A primeira tentativa de assalto


São quase quatro quilômetros entre o hotel onde ainda estou morando e o lugar onde trabalho. Juro que tentei andar nos meios de transporte locais, que deixam qualquer van paraguaia no chinelo. Mas a quantidade de pessoas que são furtadas nesses veículos, o incômodo de estranhos se encostando em mim o tempo todo e o perigo de se cair a qualquer momento pela porta que não fecha me fizeram optar por caminhar. E não me queixo, até porque são apenas 40 minutos de caminhada. Não me queixava, até hoje.

Saio do hotel às 7h20. O caminho é sempre o mesmo: o mais seguro, ou o menos perigoso, como comecei a vê-lo desde hoje. Levo comigo apenas uma pequena bolsa transpassada, onde cabem nada mais que a carteira e o celular, e uma sacolinha de pano com meu sanduíche diário, um suco e uma água, até que tenha um fogão onde possa cozinhar alguma coisa decente para o almoço. Por motivos óbvios, tento ser discreta sempre. Hoje, nada mais que uma calça jeans, uma camisa de manga longa e tênis para facilitar a caminhada. Nada de joias, aparelhos de música, relógios. Mas aqui, meu bronzeado Michael Jackson não facilita meu desafio de passar despercebida.

Ainda não se passaram 20 minutos de caminhada e percebo três jovens a me acompanhar com os olhos. Cochicham alguma coisa e saem andando. Passam por mim, falam entre si, e somem em uma ruela por onde devo passar em instantes. Do carro estacionado na calçada, um jovem indiano me chama.

“Moça, moça!” Não o conheço. Continuo andando. Um senhor africano bem vestido me para na calçada e aponta o jovem no carro. “Está a lhe chamar”. “Não o conheço”, respondo, e continuo a caminhada. O indiano, vendo que o senhor está a ouví-lo, grita “Moça, aqueles rapazes irão lhe assaltar! Passaram aqui a dizer que irão lhe assaltar. Tome cuidado!”.

Paro. Olho para o chão. Não sei o que fazer. A ruela está a menos de 50 metros. Não há policiais por perto. Caminho contra o fluxo de pessoas. Os carros na rua são muitos, não há como atravessar. Percebo que o senhor está disposto a me acompanhar. Sem pensar duas vezes, começo a acompanhar seus passos.

Passamos pela ruela. Os três jovens estão lá, a minha espera. Ameaçam um movimento, mas recuam logo que percebem o senhor ao meu lado. Dois policiais surgem na rua. O senhor para e começa a falar o que aconteceu. Os jovens somem. Certifico-me de que não me seguem mais. Sumo também entre os carros estacionados na calçada. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O mistério da jarrinha


Começo minha terceira semana em Moçambique desvendando um mistério. Desde que cheguei, vejo em todos os banheiros, mesmo os de uso público, uma jarrinha solitária. Até mesmo no hotel onde tenho morado, a jarrinha vermelha da foto ao lado alimenta minha imaginação. Seria para lavar o vaso? Para escovar os dentes? Lavar as partes? Um penico improvisado?

Nestas três semanas, conheci várias, de diferentes formatos, cores e tamanhos. E haja criatividade para tanta jarrinha! Pra piorar, sempre as vi secas, sem cheiro ou qualquer vestígio de que foram utilizadas. Antes de fazer qualquer uso, preferi certificar-me.

Hoje aproveitei um momento em que a secretária do trabalho estava sozinha na sala e larguei logo a pergunta: “Afinal, pra que serve essa jarrinha que vocês deixam nos banheiros?”

Obviamente, o susto da pergunta foi seguido de uma gargalhada.

- Onde vistes estas jarrinhas? Apenas nos banheiros femininos, pois não?

- Não entrei em banheiro masculino, mas aqui tem, na rádio tem, no hotel também.

- Pois bem. Aqui em Moçambique, as mulheres, depois que fazem xixi, gostam de se lavar com água. Mesmo que haja um bidê ou uma ducha higiênica, parece que a jarrinha é mais prática. Mas no hotel onde estás, pode ser que usem também para tomar banho, já que é comum faltar água por estes lados. Quando acontece, pode ser que levem um tonel d’água até o quarto para que se banhes.

Desvendado o mistério, acendeu-me um alerta. Se usam a jarrinha para lavar as partes, melhor não secar as mãos nas toalhas, não é mesmo?

E eis que foi-se um mistério, mas logo surgiu outro: no escritório, não há toalhas para secar as mãos, nem mesmo de papel. Há apenas aquelas máquinas de vento quente.

Bem, o mistério de como se secam, prefiro deixar por conta da minha imaginação :)

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um sonho para chamar de meu

Não são poucas as pessoas que me perguntam o que me fez voltar para a África, largar um emprego estável, bem remunerado, uma vida calma em São Paulo, coisas que se consideram promissoras. Largar tudo isso e viver de voluntariado, quase sem remuneração, em situações bastante modestas, no meio de ambientes poucos simpáticos. O motivo é simples: uma realização pessoal.

Desde que mudei de faculdade e fui morar em Florianópolis, comecei a alimentar dois objetivos. O primeiro, ser correspondente de guerra. O segundo, ir para um campo de refugiados, se possível, como correspondente de guerra. Metida que sou, preferi ir antes de me formar. O fim desta história, como quase todo mundo sabe, foi que gerou meu Trabalho de Conclusão de Curso. Fiz uma reportagem sobre meninos soldados e meninas escravas sexuais em meio a guerra civil de Uganda (publicada, posteriormente e em versão bastante resumida, pela revista Galileu, disponível a assinantes aqui). E foi desta experiência que nasceu um sonho ainda maior e mais forte: trabalhar com ajuda humanitária.

Trabalhar com voluntariado nem sempre é tão fácil quanto se parece. Há de se enfrentar as diferenças culturais, o choque de realidade, o preconceito, a falta de recursos. Mas o retorno que se tem é algo que dinheiro algum é capaz de pagar. Não há promoção na empresa, salários adicionais ou participação de lucros que se comparam à felicidade de ver nos olhos de uma criança a sensação de que ela faz parte de um contexto, de que há alguém preocupado com ela, com seu bem estar. Não há dinheiro no mundo que compre um "muito obrigado" sincero, uma lágrima que escorre ao se contar a própria história a alguém que está ali para escutar, que se importa, que quer ouvir e que quer fazer algo para amenizar a dor.

No fim, esse meu sonho de fazer algo útil para a humanidade não é assim tão altruísta. Faz-me um bem tão grande que arrisco a dizer que é muito mais por mim que pela humanidade em si. E enquanto houver em mim este desejo de fazer do mundo um lugar um pouco menos ruim para se viver, estarei por aí. Até abril, aqui por Moçambique. Depois, onde me for dada a oportunidade de investir neste meu momento de egoísmo na busca pela minha própria felicidade.

sábado, 7 de julho de 2012

Glamping


Ouvi esta expressão em um seriado de TV nesta semana: glamping, ou "camping with glamour". Não é exatamente o meu caso, of course. Mas ao menos estou com roupas limpas :)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Na linha de frente


Mal retorno à África e lembro dos motivos que me deixaram longe dela por tanto tempo. Aqui, tempo é uma medida que não se mede, uma efemeridade, uma lenda urbana em praticamente todos os lugares onde mais se precisa dele.

Ao mesmo tempo, cultiva-se uma esperança quase que materializada. E foi este um dos motivos que me fez passar cinco anos tentando voltar. Vê-se esperança na pobreza, na falta de alternativas, na vida que segue. Só não se vê esperança no fim da minha luta em busca das malas perdidas.

Estou em Maputo há três dias. Há dois, chegou minha mala. Suja, surrada, rasgada, mas chegou. O violoncelo, entretanto, descansava no limbo até as 22h de ontem, mesmo depois de cinco viagens pessoalmente ao aeroporto e ligações incontáveis. Quando minhas esperanças já estavam perdidas, ele apareceu na esteira de Maputo.

Mal desliguei o "telemóvel", já estava vestida e esperando o taxi para buscá-lo no aeroporto. Chego lá e quase o abraço de emoção. Percebo que todas as etiquetas de Frágil foram arrancadas, e me sobe um frio na espinha.

Corro para a salinha dos achados e perdidos e peço para que o oficial fique comigo ao abrir o case. Uma dor no coração. De cara, duas cordas arrebentadas. Tiro o instrumento, o inspeciono com cuidado. Felizmente, meu prejuízo ficou por aí.

Saio do limbo para abraçar Cérbero. A luta agora é pra que registrem meu dano. Primeiro, dizem-me que não há o que se fazer, porque nunca transportaram um violoncelo (que insistem chamar de viola). Depois, me mandam deixá-lo alí para ser enviado de volta a Johannesburgo para que consertem (de certo há algum segredo sulafricano de se consertar cordas arrebentadas). Por fim, dizem que é para eu ir assim mesmo, que não haverá reembolso.

Pronto, me tiram do sério. Rodo a baiana no melhor estilo brasileiro barraqueiro de ser. Chamo a polícia, exijo ser atendida por Deus em pessoa. Uma passageira que era parada no Raio X aproveita a onda de calor suburbano e começa a xingar o mundo.

Depois de muita discussão, consultam o superior dos superiores do mundo de Moçambique, que autoriza que me dêem um registro de dano na bagagem e que eu não me separe mais de meu violoncelo banguela.

Volto na manhã de hoje ao aeroporto, com as cordas quebradas em um envelope, mil formulários preenchidos, cópias até dos meus documentos da pré-escola. Brigo com mais meio aeroporto pra me fazer ser ouvida. Enfim saio de lá com um registro carimbado e assinado de entrega e a promessa de retorno em até duas semanas.

Como tempo é algo extremamente subjetivo aqui na África, veremos o que o destino me reserva.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Africa, I'm back


1º de julho de 2012

Depois de cinco anos sonhando em trabalhar com ajuda humanitária, chego hoje a Maputo. Estive no continente africano em 2007, mas mesmo depois de tanto tempo, há coisas que parecem não mudar.

O vôo de São Paulo a Johannesburgo estava agendado para partir às 18h. Pensando nas férias escolares e no caos que deveria estar Guarulhos, saí de casa às 13h. Eu, uma mala pesando 34 kg, um violoncelo, uma mala de mão e uma mochila destinadas a me deixar com hérnia de disco. Chegamos ao aeroporto e o caos estava muito maior que qualquer pesadelo estudantil. Excursões de adolescentes que não medem o volume da própria voz se aglomeravam em cada canto. Tumulto, barulho, caos.

No balcão de check in, a bagagem não passa. Mais tempo remanejando bagagens. Fila pro check in, filas pro embarque. Uma hora e meia depois, chego à emigração. No painel, última chamada para meu vôo. Saio em desparada pelos corredores intermináveis. Enfim, sento à tempo de ser jateada pelo Bom Ar "aprovado pelas agências de saúde" que nos é posto à força dentro das aeronaves.

O avião atrasa apenas 10 minutos e tudo parece bem. Parece, até a chegada a Johannesburgo.

Mais filas, confusão, mais adolescentes falando alto - desta vez, a visão do inferno se materializa em loiros e ruivos metidos em espinhas e uniformes de escoteiros. Sim, escoteiros! Duas dúzias deles, se enrolando entre documentos para autorização de viagem, passaportes, mochilas à la Inspetor Bugiganga, chicletes, bocas abertas, controle de volume quebrado.

Quando, finalmente, chego ao balcão da operadora que me levaria a Moçambique, uma moça com visível preguiça de existir no mundo rumina um "Némáshpossíveloembarcshtêncerrad". Peço para repetir. Entre uma lixada de unha e outra, olhar para baixo do balcão, rumina a frase mais duas vezes, até que a colega da companhia ao lado liga a tecla SAP: "Não é mais possível seu registro. O embarque está encerrado".

Como o atraso foi da outra companhia, me mandam até lá para ver se me encaixam em um vôo próprio para Maputo. O atendente, desta vez com o mínimo de dicção, diz que é possível, mas que me será cobrado. Afinal, quem se atrasou fui eu, já que havia uma hora e meia entre a chegada do vôo e o embarque para o próximo.

"Pois bem", reflito eu em voz alta, dois atendentes da South African me fuzilando com os olhos, "se o avião chegou com meia hora de atraso, e, por alto, leva-se mais uns 20 minutos até que se consiga sair da aeronave, perdoem-me, mas nem se a rampa desse acesso ao colo da colega da outra companhia eu chegaria a tempo para o embarque. Isso sem contar a fila gigantesca da imigração".

Sem medo de ser decaptada, fico esperando até que confirmem o atraso, a fila, a moça da outra companhia a lixar as unhas. Dez minutos de africâner alterado ao telefone e a atendente me devolve um bilhete de embarque com o aviso "You have to go NOW. And you better run, or you won't get this either".

Lá vou eu, ouvindo música de corrida de cavalos mentalmente. Arranco o notebook da mochila, atropelo o casal tartaruga no Raio X e passo desesperadamente por 30 portões de embarque. Deu tempo.

Uma hora depois, desço do avião em Maputo. Espero, espero, espero. Olho para os lados. Só resta uma mala na esteira, e não é a minha. Chega outra aeronave, mais malas. Nem sinal da minha.

Vou ao balcão de achados e perdidos. Ao menos outras dez pessoas urram a ausência de suas bagagens. Um deles reclama que já é a terceira vez no ano. O atendente tenta explicar que é assim mesmo. Rindo, ele me diz que é comum chegarem as pessoas, mas não as malas, e vice-versa. Considerando-se que meu ansiolítico ficou na mala perdida, eu não toleraria este comentário novamente.

Saio de lá com uma mochila e uma mala de mão com as coisas que não couberam na outra mala, além de um registro de reclamação de mala perdida. Por ironia do destino, fiz a mala de mão pensando que a bagagem pudesse ser perdida e eu conseguisse sobreviver até que ela fosse encontrada. Maldito Murphy!

Ao menos um motorista me espera com um envelope escrito meu nome. Vamos ao hotel África. Mas não acertamos de primeira. É outro, a três quarteirões dali.

Chego ao quarto com a esperança de, em duas horas, outro vôo de Johannesburgo ter chegado com minhas malas. Ligo para a empresa responsável e nada. Já haviam avisado que seria difícil informações por telefone. Era preciso retornar pessoalmente, no escuro.

De volta ao aeroporto, coisas que só se vê na África: uma aeronave inteira no balcão de achados e perdidos. Um avião veio da Etiópia apenas com os passageiros, e nenhuma bagagem. Nenhuma!

Meu remédio começa a fazer falta. De repente, começo a sentir uma vontade de sair correndo, de amarrar aqueles funcionários na esteira e deixar que girem nela até que minhas malas cheguem. Cade meu remédio? Cadê minha mala? Meu violoncelo, que mal sei tocar ainda?? Nada, sequer estão registrados no sistema, o que quer dizer que podem até estar em Guarulhos ainda.

Volto para o hotel conformada em viver alguns dias com as roupas da mala de mão. Compro um chip de celular, recarga. Me restam 300 Meticais na carteira - equivalente a R$ 15, que só agora sei, por me dar conta da cotação.

Começo, então, minha jornada em busca de um xampu e um desodorante, já que tudo que trouxe ficou na mala perdida. Mas 300 MT não devem ser suficientes. Passo no caixa eletrônico, sem sistema. Passo no seguinte, que reinicia assim que insiro o cartão.
- Tela azul do Windows...
- Aguarde para reiniciar o sistema...
- Insira seu cartão.

Insira seu cartão? Meu cartão já está na máquina!!
Pronto, meu único cartão engolido pelo caixa eletrônico. E hoje é domingo! Terá que ficar lá até amanhã de manhã.

Pois bem, passo mais de uma hora tentando achar uma farmácia, um mercadinho, uma venda, um camelô que possa me vender xampu e desodorante. Nada.

Volto ao hotel, o recepcionista lembra-se de uma farmácia. Já está escuro, mas não tenho mais nada a perder mesmo. Chego lá, e não há nada do que preciso.

Volto chorando copiosamente para o hotel. Mal consigo pedir minha chave.
Tento usar o celular, mas é preciso fazer registro de usuário. Também só amanhã, pessoalmente na revenda autorizada da empresa. No quarto, o sinal da internet não funciona.

Começo a escrever isto tudo, na tentativa de me acalmar um pouco. Por sorte, esqueço o celular ligado, com o número que dei pela segunda vez nos achados e perdidos. E eis que recebo uma ligação. Minhas malas estão lá. Bom, vamos ver o que o destino me reserva. Que chamem Caronte! Estou pronta para atravessar rumo ao inferno de Dante.


[Como se pode perceber, este post só foi publicado hoje, dia 3, quando a internet funcionou a lenha aqui no hotel]