terça-feira, 31 de julho de 2012

Vou de taxi, cê sabe!

Começar um post, a essas alturas, falando que o alguma coisa aqui é uma loucura seria repetir o óbvio. Mas é difícil achar um adjetivo que descreva melhor o trânsito e os meios de transporte em Maputo.

A primeira coisa que um gringo branquelo não vindo das proximidades do Reino Unido ou da Ásia precisa superar é a tal da mão inglesa. Das duas uma: ou você vai acabar abrindo a porta do motorista quando pegar uma carona e vai se deparar com o volante (enquanto o motorista ri da sua cara, claro), ou vai viver perigosamente a cada esquina. Eu, que não sou qualquer turista, já fiz dos dois. E, como gosto de bater perna, só agora começo a me acostumar a olhar pro lado certo quando atravesso a rua.

Outra aventura, e das grandes, como comecei a relatar no post anterior, é andar nos chapas. Agora que moro em outro lugar, tenho a sorte de pegar os micro onibus no contrafluxo e raramente vou pro trabalho cheirando o cangote dos colegas. Não tenho a mesma sorte com as músicas.

Motorista do chopela tentando desviar do trânsito.
Motorista de chapa precisa ser, obrigatoriamente, DJ nas horas vagas. E precisa praticar nas horas de trabalho mesmo, o que dificulta um bocadinho a comunicação. Hoje, enquanto ia para o trabalho, tocou de tudo no rádio do busão: Michel Teló, Wando, Fagner, Roberto Carlos, e, de saideira, The power of love, aquela que a Rosana traduziu como O amor e o poder. E o volume estava tão alto que se eu começasse a cantar junto, ninguém ia perceber. Aliás, essa seria uma boa, hein? A branquela doida cantando Como uma deusa / você me mantém!

O desafio maior, porém, é você avisar o motora que vai descer no próximo ponto. É claro que não tem cordinha pra puxar. Tem que encher o pulmão e gritar "Paragem!". Isso umas três vezes, até alguém escutar. O cobrador é quem geralmente avisa o motorista, mas isso quando não está pendurado pra fora do busão, chamando a galera pra entrar.

Funciona mais ou menos assim: o chapa vai chegando no ponto, ou paragem, o cobrador já abre a porta e poe metade do corpo pra fora. Se ninguém vai descer, ele fica lá, gritando o destino final pra ver se alguém se interessa em subir. Se alguém desce, ele vai acompanhando, caminhando, do lado de fora, mão agarrando o puta-merda da porta, e gritando pra chamar a galera. Aí o motorista dá uma acelerada mais forte e ele pula pra dentro. Enquanto isso, a galera tem que descer com o veículo em movimento. Adrenalina pura!

A comunicação cobrador/motorista também é interessante. Usa-se o moderno método de bater na lataria. Se tem um tiozinho correndo pra pegar o chapa e o motora não viu, o cobrador tasca soco na lataria. O motorista acelera menos e a pessoa sobe. Se alguém grita "Paragem!" e o motorista não escuta, o cobrador assovia e tudo se resolve.

E, a mais clássica de todas: se o busão tá cheio (lê-se cheio pra caraca, com gente com a busanfa pra fora da janela e cabeça ralando no teto), o motorista, além de não parar, vai te fazer um sinal. Vai bater com a palma de uma mão aberta sobre a outra, fechada, estilo "sentou no sorvete". Pra eles, é um gesto de "tá cheio, ê pá". No Brasil, a gente entenderia "se ferrou!". Então, se for pegar chapa aqui e levar este gesto, ele não está rindo da sua cara e te mandando ir a pé. E, acredite, você estaria muito mais ferrado se ele tivesse parado pra você entrar.

Por fim, compartilho outra experiência que tive na semana passada. Sexta-feira, abertura das Olimpíadas, fui comprar uma TV. Não ia trazer de chapa e não passava um taxi na rua. Peguei um chopela, aquela cruza de moto com fusca, da foto ali do lado. Ainda não consegui fotografar um daqui, mas o modelo indiano que peguei na internet ilustra bem. Por incrível que pareça, não começaram a usar chopela como transporte de mais de dois passageiros por aqui. Melhor não divulgar muito essa foto indiana.

Pois bem, o tal do chopela (que, na língua local, significa carona) custa metade da corrida de taxi, com o dobro de aventura. Não tem cinto de segurança nem capacete. O vento bate na cara o trajeto todo. E os pilotos deixam motoboy paulista comendo poeira. Detalhe é que fazem isso com você dentro.

Tentei filmar o trajeto de dentro do chopela, mas o negócio treme tanto que tive que escolher entre filmar e segurar a mim, o celular e a caixa da TV dentro dele. Mas vale a canora.


segunda-feira, 30 de julho de 2012

No português de Moçambique


Aqui em Moçambique, fala-se português na maioria das vezes, mas isso não é garantia de comunicação fluida. O português é bem lusitano, com palavras conhecidas nas nossas piadas, como bicha e rapariga, mas com uma pitadinha da pimenta africana.

Há uma porção de dialetos, quase 30 só em Moçambique. Quando a galera vê que tem um branco por perto e não quer que ele participe da conversa, tasca dialeto. Mas tem muita palavra que não existe e eles recorrem ao português. Dia desses estava no chapa e o motora falando com o cobrador “birulirularoler miripirotimoleno ENGARRAFAMENTO!”. Pelo menos entendi que não era de mim que estavam falando.

Também tem a famosa expressão “então tá NICE!”, que já recorre ao inglês e fica mais chique. Mas engraçado mesmo é quando eles falam “estamos juntos”. Pra eles, “estamos juntos” é como um “então beleza”. “Mano, vou ali almoçar e depois vou dar uma cochilada.” “Estamos juntos.”

Além disso, mulher deconhecida é "mama", ou "mami", pros mais meigos. Nada da tia da escola. É a mama mesmo. Acompanhando o raciocínio, nosso “tiozão” ou “tiozinho” é o “papa” deles, ou o “papi”. E quando a pessoa é brother, chama de mano. Tudo em família.

Eu, como boa brasileira que sou, já dei minhas mancadas por aqui. Dia desses fui a uma pastelaria. Estava lá, no letreiro, bem grandão: Twigo Pastelaria, Padaria e Restaurante. Pois bem. Chamo a garçonete.

- Tem pastel de quê?
- Não temos pasteis.
- Mas aqui não é uma pastelaria?
- É, sim senhora.
- E não tem pastel?

Respondeu nada. Ficou muda, me olhando com uma cara de que nada seria mais óbvio que não ter pastel numa pastelaria. Não entendi. Olhei o cardápio. Imaginei que Sandes era sanduiche, e era mesmo, mas a foto não era muito bonita. Depois descobri que, a não ser no KFC, a foto do cardápio nunca corresponde ao que é servido. E não é nada de propaganda enganosa, é que não tem nada a ver mesmo. A figura não ilustra a escrita. Pode ser uma foto de buchada de bode pra ilustrar uma caldeirada de mariscos. E ninguém liga pra isso mesmo.

Enfim. Olhei o cardápio e pedi um prego no pão. Prego é o que eles chamam de bife. Um xis-boi, com bife, tomate e cebola no pão francês, que aqui não chama de francês, só de pão. Pão de leite é pão de leite, pão de mel nem existe, mas pão francês é só pão. E pão de queijo é uma lenda que contam existir lá no Cantinho do Brasil, mas nunca consegui ver. Aliás, se a brasileira dona de lá dependesse disso pra viver no Brasil, morreria de fome. Pior comida que já provei na vida.

Dia desses, perguntei pro logista da ONG o que é uma pastelaria. Ele disse, com a maior obviedade do mundo, que é onde se fazem lanches, ô pá. Então, pra um bom brasileiro, pastelaria aqui é nossa tradicional lanchonete.

Pra geladeira, eles falam geleira. Comem omolete, e não omelete. E a feijoada deles tem nada a ver com a nossa. Vai carne de boi, e nem precisa ser com feijão preto. Tem até versão com frutos do mar – herança dos portuga.

Se você vai pegar uma carona com alguém, diz que vai pegar uma boleia. E boleia também é o nome daquelas motinhos indianas, cruza de moto com fusca, que aqui funcionam como taxi, e, na língua local, chamam-se chopela. Mas essa boleia não é de graça. Quando alguma coisa é na faixa, eles falam que é "de borla". A vantagem de andar de chopela é que é uma aventura a parte, pra compensar a metade do preço cobrado pelos taxis. Tentei fazer um viodizinho dia desses andando em uma. Posto durante a semana.

O trem aqui se chama comboio, mas é uma coisa que nunca funciona e todo mundo reclama. Pior um pouco que em São Paulo.

E o busão daqui se chama chapa. Aliás, esses chapas, meu amigo, são capazes de colocar suas orações em dia. Podem ser micro onibus (chapa 100) ou aquelas vans mesmo, estilo transporte clandestino. Mas em todo o tempo que morei em Foz do Iguaçu e de todas as vezes que cruzei a Ponte da Amizade, nunca vi uma van que chegasse aos pés desses chapas.

Pra quem conhece Foz do Iguaçu, pensa em uma van daquelas que cruzam a ponte. Daquelas típicas mesmo, que a porta não fecha e que a mola do banco fura a calça. Agora pensa nessa van depois de um tiroteio na ponte, cheio de negão suando de nervoso dentro. Pois este é o visual e o aroma dos chapas.
Se no inverno o fudum já é dos bravos, fico imaginando o que será de mim no verão.

Pensei em comprar uma bicicleta pra dar minhas voltas por aqui. Até vi uma marca local nesse final de semana, a Mozambike. Mas me disseram que era preciso ter carteira pra pilotar uma bike daquelas. Vai saber que poder ela tem nas suas 5 marchas. Mas pra andar de moto de poucas cilindradas, também ouvi dizer que não precisa de carteira. Então, até o verão, compro uma motinho. Até lá, dou minhas voltas de chapa mesmo.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Um pouco da vizinhança

A pedidos, depois de criar um pouco de coragem, aqui vão algumas fotos da vizinhança do trabalho. Estão meio estranhas porque tirei com o celular, caminhando ou de dentro do busão. Metade delas ao som de Roberto Carlos, Paula Fernandes, Gustavo Lima e Michel Teló, que fazem o maior sucesso com a galera de Moçamba. Hoje, inclusive, cheguei no trabalho com a criançada cantando, logo cedo "Já pegou no cabelinho? Já peguei! Já pegou na orelhinha? Já peguei!". Alias, as músicas que tocam aqui são um assunto a parte. Ficam pra outro post.



Rua logo na entrada da "comunidade" onde trabalho.

Mesma rua, um pouco mais perto do trampo.

A rádio onde trabalho fica no predinho do meio.


Uma parte do mercado Xipamanine, perto do trabalho também.


Galera vende as coisas no chão mesmo, e acha-se de tudo nesse mercado.

Eu, cidadã moçambicana


Segunda foi também o dia de pedir pra instalar internet no meu novo lar. Pra minha sorte, tem um escritório das Telecomunicações de Moçambique bem em frente ao prédio onde moro. Cheguei logo que vi pela janela que haviam aberto o escritório.


Peguei a lista de documentos necessários. Ferrou. Precisa ter um tal de NUIT, que é uma espécie de CPF moçambicano. Explico pra moça que não sou moçambicana, que estou aqui fazendo trabalho voluntário, que não faz sentido eu ter esse documento. Ela chama o chefe, um gringo com cara de árabe, usando um vestido de cetim e um chapeuzinho muçulmano, que começa o sermão.

- Sem o NUIT, não há de ser possível, ó pá. Todo cidadão precisa ter um NUIT. É uma prova de que a senhora está com os impostos em dia.
- Mas meu senhor, eu nem sou moçambicana.
- Mas está morando aqui, então, pelo tempo que ficar em Moçambique, tem que provar que paga imposto.
- Meu trabalho é voluntário, não tem nada de imposto pra se pagar.
- Mas se não tem imposto pra pagar, tem que provar também. E prova isso com o NUIT. Todo cidadão moçambicano precisa ter.

Não vai ter jeito. Pego um a carona com o office-boy da TDM mesmo e vou até o lugar onde se tira o tal de NUIT. Por sorte sai na hora e é de graça.

Chego lá, começo a preencher um formulário sem fim. Lá pelas tantas, pedem dados de um contato meu em Moçambique, uma espécie de referência. Não tenho, deixo em branco. Quando entrego, o atendente me barra.

- E o seu representante?
- Não tenho.
- Não conhece ninguém em Moçambique?
- A ponto de me representar, não.
- Mas e se a gente quiser falar com a senhora, como entra em contato?
- Tem meu telefone aí, ó. E meu endereço. E meu e-mail. Tá tudo aí.
- Mas tem que ter contato de referência. A senhora não trabalha?
- Faço trabalho voluntário.
- Então não paga imposto. Mas tem que ter representante mesmo assim.

Tá bom. Ligo pro diretor da rádio, que aceita ser minha referência. Preencho e entrego de novo.

- Agora a senhora pode se sentar ali, que preciso fazer umas coisas e depois faço seu cadastro. Esteja a vontade. Leva só um bocadinho de tempo.
- Então, enquanto isso, vou até o banco, pode ser?
- Se a senhora for, há de levar o papel consigo.
- Mas aí como você faz meu cadastro?
- Faço quando a senhora voltar.

Silêncio. Cara de paisagem.

- Ok, espero aqui então.
- Fique a vontade, só leva um bocadinho de tempo.

Algumas conversas fiadas com a colega depois, ele me chama no balcão de novo.

- Senhora, essa referência, veja cá como está o registro deste senhor [fala virando o monitor pra mim]. Está todo em branco. Não há de servir como referência.

Eu ali, muda, esperando ele me mandar procurar outra pessoa. Arrisco:

- Mas é o único contato que tenho aqui.
- Então hei de deixar sem referência mesmo. Mas avise este senhor que ele precisa completar os dados dele no registro. O NUIT dele é muito antigo, e há de ser atualizado. Por isso, vou deixar seu NUIT sem referência.

Minha Santa Maracujina! Então não era assim tão obrigatória esta bendita referência. Melhor ficar calada. Mais um “bocadinho de tempo” sentada depois, sai uma folha de papel com meu NUIT impresso.

- Se a senhora quiser, pode ir neste endereço aqui [aponta pro papel] e pede pra fazer uma carteirinha. Brasileiros gostam muito de carteirinhas, né? Pra colocar no bolso, levar junto na carteira. Aí não precisa levar esse papel.

Apenas sorrio e concordo. Nem te conto onde enfio essa carteirinha, ó pá.

Então agora sou cidadã moçambicana. Mas o contrato da internet só fica pronto pra assinar na terça. E mais cinco dias úteis pra instalar o telefone – sem combinar data ou horário antes, na surpresa mesmo. Se eu não estiver em casa, eles ligam no meu celular e eu saio correndo pra casa antes deles irem embora. Só depois disso, posso comprar o modem e colocar ADSL em casa.

E assim a África anda.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

José, o Zeferino de Moçamba


Pra não falarem que eu só reclamo, contei a primeira parte alegre sobre a mudança pro apartamento. Faltou, óbvio, a novela mexicana dos primeiros dias. Mas, pra deixar a história menos angustiante, vou falar do José, o quebra-galho que foi dar um tapa lá no meu flat – no bom sentido, é claro.


Antes, uns detalhes. Comprei minha vasta lista de móveis e artigos pra decoração na sexta-feira passada. Pra dar aquela força, um dos logísticos lá da ONG (logístico é a versão chique pra office-boy) pegou o caminhãozinho dele, colocamos todas as cinco caixas em cima, e levamos pro apê. Chegando lá, minha coordenadora, que já havia tentando dar uma prensa no pintor sem que eu percebesse, me avisou que ainda faltavam uns detalhes. Coisa básica: não tinha cópia da chave do cadeado da entrada do prédio, os canos estavam entupidos, o pintor não havia terminado o serviço dele, nem ia terminar, e o eletricista viria no dia seguinte. Logo, teria que dormir mais uma noite no hotel.

Sem problemas. Dia seguinte, peguei um taxi e levei as coisas todas pro apartamento. Detalhe é que o motorista sequer desceu do carro. Nas palavras dele, ele era motorista, e não carregador. Pois bem, que morra com a bunda colada naquele banco ensebado.

Duas horas depois, batem na minha porta. Abro e descubro, depois de muito penar, que era o vizinho, cujo nome não entendi, com o José, o eletricista. Detalhe que o vizinho é gago. Mas não gago só de sílaba. Cada vez que ele gagejava, ele erguia os calcanhares, fazia um “Píiii-fim-iiim-desculpa” ou “Ihhh-fiimm-hom-desculpa”, e gaguejava mais ainda. E eu ali, com a porta entreaberta, segurando o look cara de paisagem, chorando de rir internamente, esperando até que saísse a frase inteira.

Nesse tempo, avisaram que o encanador não ia aparecer. Então, o José, o eletricista, avisa que pode fazer os trabalhos de encanador também. Das 11h da manhã às 8h da noite, lá ficamos eu e José no apartamento. E nada do trabalho acabar. Decidimos que ele voltaria na segunda. Ao menos havia água (fria) e lâmpada funcionando.

Ele foi e eu decidi limpar o apartamento pra começar a guardar as coisas. Dois armários limpos depois, acabou a água. E eu sem tomar banho. Fingi calma pra mim mesma e continuei, na certeza de que a água voltaria. Já passava das 11h da noite quando ouvi um barulho de água na caixa da privada. Só deu tempo de subir na banheira e tomar banho na torneira de água fria mesmo, de canequinha. Foi sair que a água acabou de novo.

(Dois detalhes: na África, ter banheira é coisa comum. Não é chique. Até porque a galera usa a banheira como uma grande bacia que só não deixa a água espalhar pelo banheiro. Não enche e fica lá sentado, pensando na vida. Fica em pé dentro mesmo, e toma banho normal. Outro detalhe é que aqui não é costume usar chuveiro elétrico. Galera usa termoacumulador e aquelas torneiras misturadoras na casa toda. Pra que é que vai ter água quente na pia da cozinha, em plena África? Pra não congelar a mão nos 20° que tá fazendo agora no inverno? Ah, vah!)

No dia seguinte, quase meio dia, e ainda sem água. Ligo pra minha coordenadora, que fala com a dona da casa. Aqui em Moçambique, a galera muito esperta tem a caixa de água no nível do chão. Então, tem que ter sempre uma bomba funcionando pra mandar a água pra cima. Se não bastasse isso, a bomba do meu apartamento e do vizinho gago é a mesma. Ele estava com um vazamento em casa, e decidiu desligar. Assim, na boa, sem avisar. Tá bom que ia levar um tempo pra sair a frase avisando, mas podia ter tentado, né?

Enquanto falava com ela no telefone, um estouro e fumaça na caixa de eletricidade. Voltou a água, foi-se a luz. Chama o seu José! Domingo é dia de descanso, mas ele compreende a necessidade e vai mesmo assim.

A água volta e começa a pingar de dentro de um dos interruptores. É claro que não ia dar certo. Como é domingo, José dá um jeitinho de isolar aqueles fios molhados, só pra não incendiar até o dia seguinte.
E eis que segunda de manhã, José avisa que vai atrasar. A esposa dele está com malária, mas isso não assusta mais a galera por aqui. Ele a deixa no hospital e vai lá socorrer a branquela, que ainda tá tomando banho frio, e de caneca.

José é uma das poucas pessoas aqui em Moçambique que parece não ter medo de trabalho. Leva tudo na esportiva, e dá um jeito pra tudo. Tem o dom da gambiarra, mas com isso eu me identifico. Até que, lá pelas tantas de segunda-feira, resolvi ajudar o Zé. Nos outros dias ele não deixou, mas depois de uns papos, ele aceita minha ajuda. Assim, acabamos mais rápido.

Depois de três dias de sufoco, tomei meu mais que merecido banho quente, cozinhei um arroz com feijão no fogão que o Zé chumbou na parede (soldou o suporte da madeira na parede mesmo, com aqueles aparelhos de soldador, já que eu tava com medo que caísse. Agora, nunca mais). E com uma boa dose de relaxante muscular, dormi feito uma pedra.

Só falta a internet em casa, que levei um baile pra pedir. Mas isso é assunto pra outro post.

Home sweet home


Enfim, estou morando em casa. Nada mais de comer sanduíche todo dia nem de lavar roupa na banheira do hotel. Depois de três semanas de procuras, enrolações e falcatruas, eis que tenho um apartamento só meu.

Achar lugar pra morar em Maputo não foi uma tarefa muito fácil. Como sou voluntária na ONG, tive que procurar um flat, como chamam aqui, dentro do orçamento disponível – e bem apertado. No acordo de trabalho, também dizia que precisava ser um Tipo 1 (de um quarto só), em lugar seguro e perto do local de trabalho. Visto que estou trabalhando em uma rádio comunitária no meio da favela, resolvi ignorar um pouco o quesito proximidade. Perto e seguro não ia rolar.

O mercado imobiliário tem lá suas peculiaridades. Além do corretor, tem sempre de duas a quatro outras pessoas que entram no bolo do primeiro pagamento – o vizinho que fica com a chave, a amiga do vizinho, que fica com a chave quando ele não está, o amigo do amigo do vizinho, que também quer uma graninha fácil e se encarrega de trazer mais gente interessada em alugar, e por aí vai. Então, o valor inicial do imóvel sempre ganha aquela reajustada pra conseguir pagar essa galera toda. E uma inflacionada quando percebem que a locatária é uma branquela. E, assim, o orçamento vai pras cucuias.

A questão de tempo, como sempre, também é muito relativa. Tanto faz levar duas semanas pra darem a resposta do dono do apartamento quanto podem alugar pra outro enquanto você inspira pra dar sua resposta. Um dos apartamentos que vi, prontinho pra morar e relativamente perto do trabalho, foi alugado pra outras pessoas enquanto digitavam as informações no contrato. E só informaram porque telefonamos para pegar a assinatura.

Mas, depois de muita paciência e sola de sapato, mudei para meu flat. Fica em um dos bairros mais seguros por aqui. É tranquilo, e tem um KFC a duas quadras daqui. E também tem um shopping e um palácio de casamentos, que tem rodízio de noiva todo sábado. Ainda vou lá tirar umas fotos.

O orçamento pra comprar mobília também é bastante limitado. Então, me acostumo com o eco. Aí do lado tem a foto da minha cozinha, o cômodo mais mobiliado do apartamento. Tem até um bolo de chocolate em cima da pia, se repararem bem. O laranja da parede ficou um pouco desbotado porque tirei a foto com o celular. Mas o look do apê é todo em tom de laranja gari. E vai ficar assim até agosto, quando vou ter dinheiro pra comprar tinta e mudar essas cores.

Detalhe para a geladeira de anão. Não que eu seja muito alta, mas esse frigobar com congelador que deu pra comprar é bastante engraçadinho no alto de seu 1,20 m de altura. Outras “modernidades” são o forno-elétrico-com-duas-bocas-de-fogão-em-cima Tabajara e a super máquina de lavar tanquinho-centrífuga-separados-mas-na-mesma-embalagem, tudo diretamente da China. Além disso, comprei uma cama. E negócios de cozinha, também no Bazar da China, que fica aqui na rua de trás. E só. 

Tá bom pra viver mais oito meses, né?

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Salsa colombiana no Centro Cultural Brasil-Moçambique

Quase uma semana sem post no blog me deixa com muito assunto atrasado. Preciso falar do apartamento onde estou morando, das aventuras de andar de chapa (o busão de Moçamba), das palavras diferentes que tenho aprendido, e mais um montão de coisa. Vou escrevendo conforme posso, mas já ficam registrados os próximos assuntos.

Pra não perder o timming, posto sobre uma apresentação que vi ontem. Foi no Centro Cultural Brasil-Moçambique. E era de salsa. Colombiana! Mistura?

Como boa turista que sou, fui logo tirar uma foto com os dançarinos - uma negrona elástica, um mulato loiro, um colombiano oxigenado e uma colombiana a la Panicat. Comigo na foto, a Cristiana, uma portuga super gente fina que também está fazendo uns trabalhos lá na ONG.

Agradecimentos à Marianna, carioca bem querida que também é voluntária na ONG, que convidou para o evento e tirou a foto :)

E, pro turismo ficar completo, abaixo vai um videozinho muito meia boca que fiz com o celular. Tem uns ombros na frente, a luz tá fraca, mas dá pra ver como dançam esses colombianos.



Reza a lenda que terei internet em casa até o final de semana. Só acredito depois que acessar o Google de lá. De qualquer forma, tentarei postar com mais frequência nos próximos dias.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

O dom da oratória


Chego a uma loja hoje pela manhã. São 8h05 e a porta está fechada. O segurança vem ao meu encontro.

- Está fechada.
- E a que horas abrem?
- Às 9h30.
- 9h30?!
- Não, às NOVE e trinta.
(Só pode ser pegadinha, penso.) – Abrem daqui a uma hora e meia?
- Não, abrem às 9h30, daqui a 25 minutos. Terás que aguardar um bocadinho.
- Mas e que horas são agora?
- São nove e cinco.
- Oito e cinco?
- Sim, nove e cinco.

Decido ir embora e voltar à tarde.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

A primeira tentativa de assalto


São quase quatro quilômetros entre o hotel onde ainda estou morando e o lugar onde trabalho. Juro que tentei andar nos meios de transporte locais, que deixam qualquer van paraguaia no chinelo. Mas a quantidade de pessoas que são furtadas nesses veículos, o incômodo de estranhos se encostando em mim o tempo todo e o perigo de se cair a qualquer momento pela porta que não fecha me fizeram optar por caminhar. E não me queixo, até porque são apenas 40 minutos de caminhada. Não me queixava, até hoje.

Saio do hotel às 7h20. O caminho é sempre o mesmo: o mais seguro, ou o menos perigoso, como comecei a vê-lo desde hoje. Levo comigo apenas uma pequena bolsa transpassada, onde cabem nada mais que a carteira e o celular, e uma sacolinha de pano com meu sanduíche diário, um suco e uma água, até que tenha um fogão onde possa cozinhar alguma coisa decente para o almoço. Por motivos óbvios, tento ser discreta sempre. Hoje, nada mais que uma calça jeans, uma camisa de manga longa e tênis para facilitar a caminhada. Nada de joias, aparelhos de música, relógios. Mas aqui, meu bronzeado Michael Jackson não facilita meu desafio de passar despercebida.

Ainda não se passaram 20 minutos de caminhada e percebo três jovens a me acompanhar com os olhos. Cochicham alguma coisa e saem andando. Passam por mim, falam entre si, e somem em uma ruela por onde devo passar em instantes. Do carro estacionado na calçada, um jovem indiano me chama.

“Moça, moça!” Não o conheço. Continuo andando. Um senhor africano bem vestido me para na calçada e aponta o jovem no carro. “Está a lhe chamar”. “Não o conheço”, respondo, e continuo a caminhada. O indiano, vendo que o senhor está a ouví-lo, grita “Moça, aqueles rapazes irão lhe assaltar! Passaram aqui a dizer que irão lhe assaltar. Tome cuidado!”.

Paro. Olho para o chão. Não sei o que fazer. A ruela está a menos de 50 metros. Não há policiais por perto. Caminho contra o fluxo de pessoas. Os carros na rua são muitos, não há como atravessar. Percebo que o senhor está disposto a me acompanhar. Sem pensar duas vezes, começo a acompanhar seus passos.

Passamos pela ruela. Os três jovens estão lá, a minha espera. Ameaçam um movimento, mas recuam logo que percebem o senhor ao meu lado. Dois policiais surgem na rua. O senhor para e começa a falar o que aconteceu. Os jovens somem. Certifico-me de que não me seguem mais. Sumo também entre os carros estacionados na calçada. 

segunda-feira, 16 de julho de 2012

O mistério da jarrinha


Começo minha terceira semana em Moçambique desvendando um mistério. Desde que cheguei, vejo em todos os banheiros, mesmo os de uso público, uma jarrinha solitária. Até mesmo no hotel onde tenho morado, a jarrinha vermelha da foto ao lado alimenta minha imaginação. Seria para lavar o vaso? Para escovar os dentes? Lavar as partes? Um penico improvisado?

Nestas três semanas, conheci várias, de diferentes formatos, cores e tamanhos. E haja criatividade para tanta jarrinha! Pra piorar, sempre as vi secas, sem cheiro ou qualquer vestígio de que foram utilizadas. Antes de fazer qualquer uso, preferi certificar-me.

Hoje aproveitei um momento em que a secretária do trabalho estava sozinha na sala e larguei logo a pergunta: “Afinal, pra que serve essa jarrinha que vocês deixam nos banheiros?”

Obviamente, o susto da pergunta foi seguido de uma gargalhada.

- Onde vistes estas jarrinhas? Apenas nos banheiros femininos, pois não?

- Não entrei em banheiro masculino, mas aqui tem, na rádio tem, no hotel também.

- Pois bem. Aqui em Moçambique, as mulheres, depois que fazem xixi, gostam de se lavar com água. Mesmo que haja um bidê ou uma ducha higiênica, parece que a jarrinha é mais prática. Mas no hotel onde estás, pode ser que usem também para tomar banho, já que é comum faltar água por estes lados. Quando acontece, pode ser que levem um tonel d’água até o quarto para que se banhes.

Desvendado o mistério, acendeu-me um alerta. Se usam a jarrinha para lavar as partes, melhor não secar as mãos nas toalhas, não é mesmo?

E eis que foi-se um mistério, mas logo surgiu outro: no escritório, não há toalhas para secar as mãos, nem mesmo de papel. Há apenas aquelas máquinas de vento quente.

Bem, o mistério de como se secam, prefiro deixar por conta da minha imaginação :)

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Um sonho para chamar de meu

Não são poucas as pessoas que me perguntam o que me fez voltar para a África, largar um emprego estável, bem remunerado, uma vida calma em São Paulo, coisas que se consideram promissoras. Largar tudo isso e viver de voluntariado, quase sem remuneração, em situações bastante modestas, no meio de ambientes poucos simpáticos. O motivo é simples: uma realização pessoal.

Desde que mudei de faculdade e fui morar em Florianópolis, comecei a alimentar dois objetivos. O primeiro, ser correspondente de guerra. O segundo, ir para um campo de refugiados, se possível, como correspondente de guerra. Metida que sou, preferi ir antes de me formar. O fim desta história, como quase todo mundo sabe, foi que gerou meu Trabalho de Conclusão de Curso. Fiz uma reportagem sobre meninos soldados e meninas escravas sexuais em meio a guerra civil de Uganda (publicada, posteriormente e em versão bastante resumida, pela revista Galileu, disponível a assinantes aqui). E foi desta experiência que nasceu um sonho ainda maior e mais forte: trabalhar com ajuda humanitária.

Trabalhar com voluntariado nem sempre é tão fácil quanto se parece. Há de se enfrentar as diferenças culturais, o choque de realidade, o preconceito, a falta de recursos. Mas o retorno que se tem é algo que dinheiro algum é capaz de pagar. Não há promoção na empresa, salários adicionais ou participação de lucros que se comparam à felicidade de ver nos olhos de uma criança a sensação de que ela faz parte de um contexto, de que há alguém preocupado com ela, com seu bem estar. Não há dinheiro no mundo que compre um "muito obrigado" sincero, uma lágrima que escorre ao se contar a própria história a alguém que está ali para escutar, que se importa, que quer ouvir e que quer fazer algo para amenizar a dor.

No fim, esse meu sonho de fazer algo útil para a humanidade não é assim tão altruísta. Faz-me um bem tão grande que arrisco a dizer que é muito mais por mim que pela humanidade em si. E enquanto houver em mim este desejo de fazer do mundo um lugar um pouco menos ruim para se viver, estarei por aí. Até abril, aqui por Moçambique. Depois, onde me for dada a oportunidade de investir neste meu momento de egoísmo na busca pela minha própria felicidade.

sábado, 7 de julho de 2012

Glamping


Ouvi esta expressão em um seriado de TV nesta semana: glamping, ou "camping with glamour". Não é exatamente o meu caso, of course. Mas ao menos estou com roupas limpas :)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Na linha de frente


Mal retorno à África e lembro dos motivos que me deixaram longe dela por tanto tempo. Aqui, tempo é uma medida que não se mede, uma efemeridade, uma lenda urbana em praticamente todos os lugares onde mais se precisa dele.

Ao mesmo tempo, cultiva-se uma esperança quase que materializada. E foi este um dos motivos que me fez passar cinco anos tentando voltar. Vê-se esperança na pobreza, na falta de alternativas, na vida que segue. Só não se vê esperança no fim da minha luta em busca das malas perdidas.

Estou em Maputo há três dias. Há dois, chegou minha mala. Suja, surrada, rasgada, mas chegou. O violoncelo, entretanto, descansava no limbo até as 22h de ontem, mesmo depois de cinco viagens pessoalmente ao aeroporto e ligações incontáveis. Quando minhas esperanças já estavam perdidas, ele apareceu na esteira de Maputo.

Mal desliguei o "telemóvel", já estava vestida e esperando o taxi para buscá-lo no aeroporto. Chego lá e quase o abraço de emoção. Percebo que todas as etiquetas de Frágil foram arrancadas, e me sobe um frio na espinha.

Corro para a salinha dos achados e perdidos e peço para que o oficial fique comigo ao abrir o case. Uma dor no coração. De cara, duas cordas arrebentadas. Tiro o instrumento, o inspeciono com cuidado. Felizmente, meu prejuízo ficou por aí.

Saio do limbo para abraçar Cérbero. A luta agora é pra que registrem meu dano. Primeiro, dizem-me que não há o que se fazer, porque nunca transportaram um violoncelo (que insistem chamar de viola). Depois, me mandam deixá-lo alí para ser enviado de volta a Johannesburgo para que consertem (de certo há algum segredo sulafricano de se consertar cordas arrebentadas). Por fim, dizem que é para eu ir assim mesmo, que não haverá reembolso.

Pronto, me tiram do sério. Rodo a baiana no melhor estilo brasileiro barraqueiro de ser. Chamo a polícia, exijo ser atendida por Deus em pessoa. Uma passageira que era parada no Raio X aproveita a onda de calor suburbano e começa a xingar o mundo.

Depois de muita discussão, consultam o superior dos superiores do mundo de Moçambique, que autoriza que me dêem um registro de dano na bagagem e que eu não me separe mais de meu violoncelo banguela.

Volto na manhã de hoje ao aeroporto, com as cordas quebradas em um envelope, mil formulários preenchidos, cópias até dos meus documentos da pré-escola. Brigo com mais meio aeroporto pra me fazer ser ouvida. Enfim saio de lá com um registro carimbado e assinado de entrega e a promessa de retorno em até duas semanas.

Como tempo é algo extremamente subjetivo aqui na África, veremos o que o destino me reserva.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Africa, I'm back


1º de julho de 2012

Depois de cinco anos sonhando em trabalhar com ajuda humanitária, chego hoje a Maputo. Estive no continente africano em 2007, mas mesmo depois de tanto tempo, há coisas que parecem não mudar.

O vôo de São Paulo a Johannesburgo estava agendado para partir às 18h. Pensando nas férias escolares e no caos que deveria estar Guarulhos, saí de casa às 13h. Eu, uma mala pesando 34 kg, um violoncelo, uma mala de mão e uma mochila destinadas a me deixar com hérnia de disco. Chegamos ao aeroporto e o caos estava muito maior que qualquer pesadelo estudantil. Excursões de adolescentes que não medem o volume da própria voz se aglomeravam em cada canto. Tumulto, barulho, caos.

No balcão de check in, a bagagem não passa. Mais tempo remanejando bagagens. Fila pro check in, filas pro embarque. Uma hora e meia depois, chego à emigração. No painel, última chamada para meu vôo. Saio em desparada pelos corredores intermináveis. Enfim, sento à tempo de ser jateada pelo Bom Ar "aprovado pelas agências de saúde" que nos é posto à força dentro das aeronaves.

O avião atrasa apenas 10 minutos e tudo parece bem. Parece, até a chegada a Johannesburgo.

Mais filas, confusão, mais adolescentes falando alto - desta vez, a visão do inferno se materializa em loiros e ruivos metidos em espinhas e uniformes de escoteiros. Sim, escoteiros! Duas dúzias deles, se enrolando entre documentos para autorização de viagem, passaportes, mochilas à la Inspetor Bugiganga, chicletes, bocas abertas, controle de volume quebrado.

Quando, finalmente, chego ao balcão da operadora que me levaria a Moçambique, uma moça com visível preguiça de existir no mundo rumina um "Némáshpossíveloembarcshtêncerrad". Peço para repetir. Entre uma lixada de unha e outra, olhar para baixo do balcão, rumina a frase mais duas vezes, até que a colega da companhia ao lado liga a tecla SAP: "Não é mais possível seu registro. O embarque está encerrado".

Como o atraso foi da outra companhia, me mandam até lá para ver se me encaixam em um vôo próprio para Maputo. O atendente, desta vez com o mínimo de dicção, diz que é possível, mas que me será cobrado. Afinal, quem se atrasou fui eu, já que havia uma hora e meia entre a chegada do vôo e o embarque para o próximo.

"Pois bem", reflito eu em voz alta, dois atendentes da South African me fuzilando com os olhos, "se o avião chegou com meia hora de atraso, e, por alto, leva-se mais uns 20 minutos até que se consiga sair da aeronave, perdoem-me, mas nem se a rampa desse acesso ao colo da colega da outra companhia eu chegaria a tempo para o embarque. Isso sem contar a fila gigantesca da imigração".

Sem medo de ser decaptada, fico esperando até que confirmem o atraso, a fila, a moça da outra companhia a lixar as unhas. Dez minutos de africâner alterado ao telefone e a atendente me devolve um bilhete de embarque com o aviso "You have to go NOW. And you better run, or you won't get this either".

Lá vou eu, ouvindo música de corrida de cavalos mentalmente. Arranco o notebook da mochila, atropelo o casal tartaruga no Raio X e passo desesperadamente por 30 portões de embarque. Deu tempo.

Uma hora depois, desço do avião em Maputo. Espero, espero, espero. Olho para os lados. Só resta uma mala na esteira, e não é a minha. Chega outra aeronave, mais malas. Nem sinal da minha.

Vou ao balcão de achados e perdidos. Ao menos outras dez pessoas urram a ausência de suas bagagens. Um deles reclama que já é a terceira vez no ano. O atendente tenta explicar que é assim mesmo. Rindo, ele me diz que é comum chegarem as pessoas, mas não as malas, e vice-versa. Considerando-se que meu ansiolítico ficou na mala perdida, eu não toleraria este comentário novamente.

Saio de lá com uma mochila e uma mala de mão com as coisas que não couberam na outra mala, além de um registro de reclamação de mala perdida. Por ironia do destino, fiz a mala de mão pensando que a bagagem pudesse ser perdida e eu conseguisse sobreviver até que ela fosse encontrada. Maldito Murphy!

Ao menos um motorista me espera com um envelope escrito meu nome. Vamos ao hotel África. Mas não acertamos de primeira. É outro, a três quarteirões dali.

Chego ao quarto com a esperança de, em duas horas, outro vôo de Johannesburgo ter chegado com minhas malas. Ligo para a empresa responsável e nada. Já haviam avisado que seria difícil informações por telefone. Era preciso retornar pessoalmente, no escuro.

De volta ao aeroporto, coisas que só se vê na África: uma aeronave inteira no balcão de achados e perdidos. Um avião veio da Etiópia apenas com os passageiros, e nenhuma bagagem. Nenhuma!

Meu remédio começa a fazer falta. De repente, começo a sentir uma vontade de sair correndo, de amarrar aqueles funcionários na esteira e deixar que girem nela até que minhas malas cheguem. Cade meu remédio? Cadê minha mala? Meu violoncelo, que mal sei tocar ainda?? Nada, sequer estão registrados no sistema, o que quer dizer que podem até estar em Guarulhos ainda.

Volto para o hotel conformada em viver alguns dias com as roupas da mala de mão. Compro um chip de celular, recarga. Me restam 300 Meticais na carteira - equivalente a R$ 15, que só agora sei, por me dar conta da cotação.

Começo, então, minha jornada em busca de um xampu e um desodorante, já que tudo que trouxe ficou na mala perdida. Mas 300 MT não devem ser suficientes. Passo no caixa eletrônico, sem sistema. Passo no seguinte, que reinicia assim que insiro o cartão.
- Tela azul do Windows...
- Aguarde para reiniciar o sistema...
- Insira seu cartão.

Insira seu cartão? Meu cartão já está na máquina!!
Pronto, meu único cartão engolido pelo caixa eletrônico. E hoje é domingo! Terá que ficar lá até amanhã de manhã.

Pois bem, passo mais de uma hora tentando achar uma farmácia, um mercadinho, uma venda, um camelô que possa me vender xampu e desodorante. Nada.

Volto ao hotel, o recepcionista lembra-se de uma farmácia. Já está escuro, mas não tenho mais nada a perder mesmo. Chego lá, e não há nada do que preciso.

Volto chorando copiosamente para o hotel. Mal consigo pedir minha chave.
Tento usar o celular, mas é preciso fazer registro de usuário. Também só amanhã, pessoalmente na revenda autorizada da empresa. No quarto, o sinal da internet não funciona.

Começo a escrever isto tudo, na tentativa de me acalmar um pouco. Por sorte, esqueço o celular ligado, com o número que dei pela segunda vez nos achados e perdidos. E eis que recebo uma ligação. Minhas malas estão lá. Bom, vamos ver o que o destino me reserva. Que chamem Caronte! Estou pronta para atravessar rumo ao inferno de Dante.


[Como se pode perceber, este post só foi publicado hoje, dia 3, quando a internet funcionou a lenha aqui no hotel]